Solange Cesarovna é uma das embaixatrizes musicais mais bem-sucedidas de Cabo Verde. A cantora e compositora representou o arquipélago da África Ocidental em palcos do mundo inteiro, desde o Brasil até ao Vaticano. Em 2013, participou como cofundadora na criação da Sociedade Cabo-verdiana de Música, a primeira organização de gestão coletiva (OGC) do país, para proteger exclusivamente a propriedade intelectual (PI) no ramo musical. A OGC tem hoje mais de 1.700 associados – nada mau para um país de pouco mais de um milhão de habitantes. Após ser presidente da Sociedade durante vários mandatos consecutivos, Cesarovna deixou o cargo em finais de 2023 a fim de tornar a focar-se em composição e gravação. Solange Cesarovna conversou com a Revista da OMPI sobre a importância da gestão da PI e as dificuldades de se criar uma OGC em países pequenos, sobre os recursos disponíveis para os criadores e, enfim, sobre o futuro da sua carreira.
Fale-nos sobre Cabo Verde.
Cabo Verde é um pequeno país de língua portuguesa composto por 10 lindas ilhas no Oceano Atlântico, ao largo da África Ocidental. Temos orgulho em definirmo-nos como um país da música. Nós todos gostaríamos de ter uma carreira musical – se ao menos fosse fácil [risos]!
Apaixonei-me pela música lá pelos cinco ou seis anos de idade. Desde pequenina, encontrava sempre espaços públicos, como São Vicente, que é a minha ilha, e a cidade de Mindelo, onde pudesse cantar e ouvir música. Ganhei um prémio aos sete anos e fui convidada para atuar nas ilhas. Com oito anos, fui convidada para abrir o Baía das Gatas, que é o maior festival de música de Cabo Verde.
“Não nos poderíamos entender sem a música."
A música, e especialmente a morna, é parte importante da identidade nacional de Cabo Verde. Que significado tem a morna para si?
A morna é a melhor maneira de partilharmos aquilo que sentimos, os nossos valores e o modo como nos ligamos às pessoas e ao mundo. Quando nasce uma criança, é com a morna que a acolhemos. Vamos a casa da família para proteger a criança a cantar. A morna que cantamos, “Ná, ó Menino Ná”, foi escrita por um dos maiores compositores e poetas de Cabo Verde, Eugénio Tavares.
Gravou obras de Tavares no seu álbum de 2017, Mornas. Encontrou algum desafio para fazer uso das letras dele?
Com o Tavares foi fácil porque a obra dele está no domínio público. Cabo Verde protege as obras musicais e os direitos de autor de letristas e compositores durante 50 anos após a sua morte. A gravação desse álbum fez parte de um projeto para comemorar o 150º aniversário do nascimento do Tavares, organizado pelas Edições Artiletra. A ideia por trás do projeto era apoiar a candidatura de inscrição da morna na Lista Representativa do Património Cultural Imaterial da Humanidade da UNESCO, que foi aprovada em 2019.
O Tavares trabalhou não só como poeta, letrista e compositor, mas também como jornalista e político. É preciso muito tempo para organizar coisas deste género. Tivemos de obter os manuscritos e as letras que ele tinha escrito com as próprias mãos. Desse modo, pudemos recriar as canções tal qual o Tavares as tinha composto.
De maneira geral, não acho difícil obter licenças. É claro que quando se trata de uma canção original, o processo é diferente, pois só o criador é que tem o direito de partilhar a sua obra pela primeira vez. Ainda assim, já não deve ser um processo assim tão complicado, já que temos hoje a Sociedade Cabo-verdiana de Música (SCM), que facilita o diálogo entre os criadores, artistas, compositores, produtores, gravadoras, editoras e difusoras.
Em 2013, participou como cofundadora da Sociedade Cabo-verdiana de Música. Como chegou a criar esta OGC?
Nós acreditamos que a música é a mais fantástica embaixatriz do nosso país no mundo inteiro, e não nos poderíamos entender sem ela. Infelizmente, até aproximadamente 12 anos atrás, as pessoas da indústria musical não podiam receber remuneração pelo seu trabalho porque não tínhamos um sistema profissional.
Em 2013, estávamos juntos no cemitério, porque tinha falecido o Zé Henrique, um dos grandes compositores de Cabo Verde. Eu tinha trabalhado com ele e o Kim di Santiago, outro compositor que admiro, no meu então novo álbum. O Kim e eu decidimos ali e naquele instante que íamos agir. O Zé Henrique infelizmente tinha-nos deixado, mas prometemos que íamos lutar para realizar o nosso sonho: que nenhum letrista, compositor ou artista de Cabo Verde viesse a falecer sem ter tido a oportunidade de defender os seus direitos de autor.
“Tentávamos aumentar o nosso número de associados nos concertos, nos aeroportos, nas ruas, onde quer que pudéssemos.”
Na indústria da música, os artistas muitas vezes culpam o sistema pela baixa remuneração que recebem. Diria que, em parte, cabe aos artistas resolver isto?
Sim, mas não depende só a nós. É preciso também saber quem são as outras partes interessadas, como podem ajudar e quais são as obrigações tanto dos criadores como do setor público.
É preciso ter o aconselhamento de organizações internacionais que trabalham neste campo, pois isso nos dá a certeza de que não estamos a correr atrás de um sonho maluco, e de que este sonho é 100% realizável, desde que os criadores ajam. Mas para isso, precisam de estudar o funcionamento do sistema.
Falemos sobre as partes interessadas.
Arrancámos a OGC antes mesmo de haver em Cabo Verde uma lei que permitisse às OGCs atuar e a conceder licenças em nome dos criadores. O que havia era uma lei do direito de autor, que conferia aos criadores direitos exclusivos de uso da sua obra musical. Esta mesma lei estabelece que, se os criadores não puderem ou não quiserem fazer isto eles próprios, podem pedir que uma OGC os ajude a distribuir as suas obras e podem autorizar essa OGC a representá-los na gestão dessas obras. Mas não dizia o que a OGC fazia nem que direitos tinha. Tudo só começou a acontecer depois de criarmos a SCM.
Quais foram as coisas mais importantes que aprendeu sobre a criação de uma OGC num país pequeno?
Uma vez criada a OGC, é preciso aumentar o número de associados e obter associados ativos que criem e gravem muito. O país precisa perceber que se trata de um projeto que representa coletivamente alguns dos maiores nomes no ramo.
No princípio, íamos a concertos e atuações para ver os nossos colegas e dizer-lhes que tínhamos criado a Sociedade Cabo-verdiana de Música. O nosso mandato não era digital, mas físico [risos]. Tentávamos aumentar o nosso número de associados nos concertos, nos aeroportos, nas ruas, onde quer que pudéssemos.
Feito isso, foi necessário assegurar-nos de que o governo percebia o que era uma OGC. Sem a existência do quadro jurídico necessário para atuar efetivamente dentro do território nacional, não se obtém nenhum acordo. Nós queríamos fazer com que o projeto fosse uma prioridade também para o Ministério da Cultura. O antigo sistema teve de investir nas novas leis de que precisávamos para que o nosso país, como Estado membro da Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI), adotasse os tratados e leis alinhadas a eles, de modo que pudéssemos atuar não só dentro do nosso território, como também no nível internacional. Para além disso, tínhamos também de ter a certeza de que internamente conhecíamos as funções da OGC.
"Precisa-se de uma documentação incrível e de um sistema robusto de repartição."
Como fizeram isso?
Entrámos em contacto com outras OGCs na nossa região, incluindo a Organização Sul-africana de Direitos Musicais (SAMRO - Southern African Music Rights Organization) e a Associação de Compositores, Autores e Editores (CAPASSO – Composers, Authors and Publishers Association) na África do Sul. Nos países de língua portuguesa, recebemos imensa ajuda da Sociedade Portuguesa de Autores (SPA) e fomos também até à Sociedade de Autores, Compositores e Editores de Música (SACEM), para saber como funcionava. Por fim, fomos também ao Brasil, pois gerimos também os direitos conexos. A Sociedade Cabo-verdiana de Música abrange todas as áreas do direito de autor no ramo musical. Gerimos os direitos de autor para criadores, letristas, compositores e editores, mas também para artistas intérpretes ou executantes e produtores. Na Europa, há normalmente duas OGCs: uma para os criadores e outra para os artistas intérpretes ou executantes. Por sermos um país pequeno, juntamos as duas coisas. No Brasil, faz-se o mesmo.
Tornámo-nos também membro da Confederação Internacional das Sociedades de Autores e Compositores (CISAC), para termos a certeza de que conseguiríamos cuidar do licenciamento e da representação dos nossos associados em escala mundial. Hoje, graças aos acordos de reciprocidade com sociedades-irmãs, representamos mais de um milhão de titulares de direitos e um catálogo musical de mais de 30 milhões de obras e fonogramas.
"Precisa-se de uma documentação incrível e de um sistema robusto de repartição com bons dados e transparência."
Recebemos um forte apoio da OMPI, que desenvolveu o sistema WIPO Connect em português e nos permitiu implementá-lo na SCM. A solução de TI tornou-se no primeiro sistema tecnológico para documentar e repartir royalties de direitos de autor em Cabo Verde, garantindo o pagamento dos royalties recolhidos aos seus devidos titulares. Isso foi alcançado em plena pandemia de COVID-19 e representou um importante marco para os músicos cabo-verdianos.
Levando em conta o atual estado do espaço criativo e do sistema de PI, quais são os desafios para 2025?
O desafio segue sendo estabelecer um bom setor de gestão coletiva nos países menos desenvolvidos. Parece que, num futuro próximo, o mundo inteiro estará focado na África e na América Latina. Esses dois grandes continentes têm muitos músicos, criadores e compositores jovens e maravilhosos. Sente-se que há aí uma oportunidade imensa. A melhor maneira de aproveitar esta oportunidade é organizarmo-nos, com a ajuda das partes interessadas internacionais, como a OMPI, a CISAC e outras federações que representam os criadores no mundo inteiro. É fundamental o apoio de organizações internacionais que possam também fazer pressão junto dos governos.
“Está a inspirar-me a criar mais música, porque acho que o meu país está mais preparado para perceber a propriedade intelectual.”
Falemos sobre a CLIP, a plataforma gratuita de conhecimentos lançada pela OMPI e pela Music Rights Awareness Foundation (Fundação para a Conscientização sobre os Direitos Musicais).
A CLIP oferece a todos aqueles que atuam no ecossistema musical uma maneira de aprender. É possível dar aos criadores meios para saberem o que fazer se não tiverem as estruturas necessárias no seu país. É maravilhoso, pois eles podem adquirir as ferramentas de que precisam para fazer a sua parte da melhor forma possível; afinal, nós os criadores temos direitos, mas também deveres.
Ao criarmos uma canção, devemos reunir a melhor equipa. Da mesma maneira, precisamos de empenhar-nos ao máximo na gestão da nossa PI.
Aquilo que mais aprecio na CLIP é que são colegas – ou seja, outros criadores – a falar de temas julgados complexos, como os códigos de identificação, cuja importância fica bem clara para todos. Aprendemos também sobre os contratos padrões que devemos assinar e há ainda um enorme glossário dos termos utilizados na indústria da música.
Qual será a próxima etapa na sua carreira musical?
Estou à espera de um momento de inspiração que me permitirá partilhar as minhas novas obras e gravações musicais. Encerrei o meu mandato de presidente da Sociedade Cabo-verdiana de Música em 2023 e regressei à composição de canções. É um bocado difícil encontrar o equilíbrio justo entre a presidência de uma OGC e a criação de obras.
Valeu a pena?
Nós tivemos a oportunidade e o desafio de criar uma OGC do nada. Foi muito trabalho, muito aprendizado, muita experimentação, muita partilha, muito tempo! Mas estou feliz em ver o sistema a funcionar.
Isso representa uma grande mudança no meu país. Está a inspirar-me a criar mais música, porque acho que o meu país está mais preparado para perceber a propriedade intelectual. Os meus colegas estão a beneficiar-se do sistema e eu mesma vou agora beneficiar-me do sistema mais que nunca.
Outra coisa que é verdade é que a minha paixão pelo direito de autor e pela gestão da PI aumentou 100%. Quero continuar servindo este setor e quero continuar aprendendo.
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Esta entrevista foi editada e condensada a partir de duas conversas.