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O caso judicial do século 18 que mudou a lei do direito de autor

 Eyal Brook, sócio e diretor do Departamento de Inteligência Artificial, S. Horowitz & Co

18 de Setembro de 2025

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Quando Johann Christian Bach processou uma editora não autorizada na Londres do século 18, ele obteve o reconhecimento jurídico das obras musicais como propriedade intelectual. Sua vitória repercute-se até hoje, na atual paisagem da música digital.

Poucos eram aqueles que, nas salas de concerto da Londres do século 18, podiam então imaginar que aquelas notas musicais a flutuar no ar viriam a tornar-se o objeto de um dos embates judiciais de maior repercussão da história. Foi, porém, naquela época que o conceito de "obra musical" como propriedade legal foi, pela primeira vez, levado aos tribunais.

A história da relação entre a música e a lei do direito de autor revela mudanças profundas nas maneiras como percebemos criatividade, autoria e a natureza da expressão musical. Desde as partituras de séculos passados, manuscritas a pena e tinteiro, até as modernas composições geradas com algoritmos, a questão sobre quem detém a propriedade sobre uma criação musical – e, até mesmo, o que constitui tal criação – continua reverberando por entre nossas estruturas jurídicas e nosso entendimento filosófico.

O nascimento da obra musical

Pode parecer improvável, mas o filho mais jovem do lendário Johann Sebastian Bach é um dos protagonistas da história do direito de autor na música.

Em 1763, Johann Christian Bach recebeu um privilégio real que lhe concedia direitos exclusivos para a publicação de suas composições durante 14 anos. Atuando inicialmente como seu próprio editor musical, Bach lançou os trios “Op. 2” e as sinfonias “Op. 3” pelo selo que ele mesmo criou, antes de se interessar por outras empreitadas, valendo aqui destacar sobretudo a série de concertos que dirigiu com o amigo Carl Friedrich Abel nos Jardins de Vauxhall, em Londres.

O sucesso, contudo, costuma gerar imitações. Em 1773, Bach descobriu que a editora Longman & Lukey tinha obtido cópias de suas obras musicais e as estava vendendo sem permissão, colhendo lucros substanciais graças ao trabalho criativo do compositor.

Ao contrário de muitos compositores da época, que provavelmente teriam aceitado aquela prática bastante comum então, Bach dispunha tanto dos meios financeiros como da determinação necessária para pôr aquilo em causa pelos canais legais.

Por intermédio de seu advogado, Charles Robinson, Bach apresentou uma queixa formal, declarando ter "composto e escrito uma certa composição musical para cravo intitulada uma 'sonata'" e que, "desejoso de publicar a referida obra ou composição musical", tinha requerido e obtido um "privilégio real".

O documento descrevia como a editora tinha, "por meios indevidos, obtido cópias" e "sem a licença e o consentimento deste vosso enunciador imprimido, publicado e vendido, por um lucro muito alto, diversas cópias" da obra dele.

O que se seguiu foi uma odisseia judicial de quatro anos, que transformaria a lei do direito de autor. Bach e seu colaborador Abel, por intermédio de um advogado, moveram duas representações criminais contra a editora, sem no entanto lograr êxito.

Por essas palavras, nascia oficialmente a "obra musical"

Ao compreender que o seu privilégio real oferecia uma proteção insuficiente, já que perdia a validade com o tempo, Bach mudou de estratégia e apresentou um embargo de declaração para estabelecer que as composições musicais se enquadravam no âmbito do Estatuto da Rainha Ana.

Em 1777, a causa chegou ao King's Bench – isto é, a Corte Real – onde foi julgada por Lord Mansfield, juiz conhecido por sua interpretação progressista da lei do direito de autor. Sua decisão foi nada mais nada menos que revolucionária:

“As palavras do Ato do Parlamento são muito abrangentes: 'livros e outros escritos'. Não se restringe à linguagem ou às letras. A música é uma ciência: pode ser escrita; e o modo de transmitir as ideias é por sinais e marcas. [...] Nós somos da opinião de que uma composição musical é um escrito nos termos do Estatuto do 8º Ano da Rainha Ana.” (Bach v. Longman, 98 Eng. Rep. 1274 (K.B. 1777)) (Eng.).

Por essas palavras, nascia oficialmente a "obra musical". Lord Mansfield certificou que a música estava protegia pela lei do direito de autor, dissipando todas as dúvidas anteriores sobre o assunto e assegurando que Bach fosse lembrado não somente por suas composições, mas também pelo fato de ter mudado a visão da lei com relação à arte da música.

Ilustração da vista dos Jardins de Vauxhall, de 1751, exibindo alamedas arborizadas, pavilhões e pessoas passeando em trajes formais.
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Vista panorâmica dos Jardins de Vauxhall, Londres. Gravura em aquarela colorida à mão, de John S. Müller, à maneira de Samuel Wale, c. 1751.

É impossível superestimar o significado do caso Bach v. Longman, que, durante mais de 60 anos, permaneceu o principal caso sobre a questão, e que estabeleceu um precedente para uma interpretação mais ampla da lei do direito de autor, estendendo-a a qualquer obra que pudesse ser considerada um livro ou uma forma de escrita.

A decisão precedeu a Lei Britânica do Direito de Autor de 1842, que foi outra vitória significativa para os compositores, já que prolongava de 14 para 42 anos a titularidade do direito de autor, incluindo, além disso, os direitos exclusivos de execução pública e de publicação das composições musicais.

A Convenção de Berna de 1886, promoveu essas proteções no nível internacional. Embora não determine aquilo que se pode classificar de obra, ela define como obras protegidas "todas as produções do domínio literário, científico e artístico, qualquer que seja o seu modo ou forma de expressão".

Na lista da Convenção de Berna de obras protegidas constam "as obras dramático-musicais" e "as composições musicais com ou sem palavras". Esses conceitos aplicam-se ainda às óperas, aos musicais e a todos os tipos de obras musicais dos dias atuais.

A evolução das definições

As obras musicais ainda ocupam um espaço único. "Mais que quaisquer outras atividades artísticas, a música possui propriedades etéreas que se infiltram e se impregnam em várias facetas da nossa existência, de maneira complexa", escreve J. Michael Keyes em seu artigo de 2004 “Musical Musings: The Case for Rethinking Music Copyright Protection.”

A referida complexidade conduziu a modelos divergentes em diferentes jurisdições. No Reino Unido, a Lei Imperial do Direito de Autor, de 1911, implementava a norma estabelecida pela Convenção de Berna, mas não definia o termo "obra musical". A Lei do Direito de Autor de 1956 mantinha o mesmo silêncio.

Foi somente em 1988, com a Lei do Direito de Autor, de Desenhos Industriais e de Patentes, que o direito britânico articulou que uma obra musical consistia em "música, excluindo quaisquer palavras ou ações destinadas a ser cantadas, recitadas ou interpretadas com a música".

Os Estados Unidos seguiram um movimento semelhante de reconhecimento gradativo. A sua primeira Lei do Direito de Autor, de 1790, não mencionava as composições musicais, fazendo apenas referência a "mapas, cartas e livros". A lei dos Estados Unidos de então tinha como principal foco o conhecimento, em vez da criatividade e da arte. Foi somente em 1831 que a melodia e o texto receberam proteção jurídica e, ainda assim, a lei permaneceu em silêncio com relação ao processo criativo subjacente às obras musicais.

Posteriormente, como observa David Suisman em seu livro “Selling Sounds: The Commercial Revolution in American Music”, publicado em 2009, a Lei do Direito de Autor de 1909 “fixou o curso da lei do direito de autor estadunidense para a maior parte do século 20. Mas embora a lei fizesse referência aos rolos de pianola e aos fonogramas como sendo 'cópias' de música protegida pelo direito de autor, no âmbito da lei, ela não fazia dos sons propriamente ditos objeto do direito de autor. [...] A música dos rolos de pianola e dos fonogramas estavam inscritas na lei não como som, mas como 'texto'.”

Quando as notas se tornaram números

As ambiguidades à volta das obras musicais foram drasticamente ampliadas pelas mudanças tecnológicas. Uma das principais evoluções ocorreu na relação entre a notação escrita e o som propriamente dito. Visto que, ao longo da história, a única maneira de se preservar música era por meio da notação musical por escrito, a titularidade do direito de autor para as obras musicais se desenvolveu como uma forma de propriedade intelectual incorporada em textos musicais, ou seja, nas partituras.

Página do manuscrito em notação musical de "Salve Regina", de Johann Christian Bach, conservado na Biblioteca Britânica, em Londres.
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"Salve Regina", de Johann Christian Bach, composição musical conservada na Biblioteca Britânica, em Londres, como parte do manuscrito Add MS 29293.

No entanto, a emenda de 1971 à Lei do Direito de Autor dos Estados Unidos estendeu a proteção ao som gravado. Também se faz essa distinção na Convenção de Roma e em outras jurisdições do direito romano-germânico, que tratam os produtores de fonogramas como titulares de direitos conexos. Os fonogramas recebem a proteção do direito de autor como obras independentes, para além da proteção concedida à obra musical materializada nos próprios fonogramas. Trata-se do único campo artístico protegido pelo direito de autor em que existe uma distinção entra a obra e seu formato gravado.

Há uma nova camada de complexidade na era moderna: quando os novos direitos foram reconhecidos para proteger os fonogramas no século 20, os direitos fonográficos foram investidos na gravadora ou no empresário que encomendava a gravação. Surgiu assim uma nova mercadoria, a gravação matriz; o criador, no entanto, ainda não era reconhecido.

Quando um algoritmo gera uma nova composição, quem detém o direito de autor dessa obra?

Atualmente, com a democratização da produção de música graças às tecnologias de gravação e de distribuição digitais, tem-se debatido se uma obra gerada por IA pode ser protegida pelo direito de autor ou ser objeto de direitos conexos.

As tecnologias digitais reuniram ferramentas que antes estavam separadas: os instrumentos, os equipamentos de gravação e os computadores. Esse fato alterou de maneira fundamental tanto o processo criativo como o nosso conceito de propriedade dentro desse processo.

A era digital deu origem a formas inteiramente novas de criatividade musical, expressas por meio de conceitos radicalmente diferentes daqueles de épocas passadas.

Música gerada por IA e direito de autor

Quando olhamos para o futuro, é possível perceber que o advento da inteligência artificial na composição musical introduz provavelmente o mais profundo questionamento, até hoje, de nossos conceitos de autoria musical e direito de autor.

Quando um algoritmo que foi treinado com milhares de obras de criação humana gera uma nova composição que parece indistinguível de uma obra por um compositor humano, quem detém o direito de autor dessa obra, se é que alguém o detém?

Essa pergunta faz eco às questões fundamentais levantadas no caso Bach v. Longman, mas com novas dimensões que os juízes do século 18 nunca podiam ter imaginado.

Assim como Lord Mansfield teve de determinar se a notação musical podia ser considerada um "escrito" nos termos do Estatuto da Rainha Ana, os tribunais de hoje devem debater se a música gerada por IA constitui ou não uma obra de autoria.

O desafio é ainda mais complexo visto que os sistemas de IA perturbam as noções tradicionais de criatividade. À medida que os humanos criam os algoritmos e fornecem os dados de treinamento, a IA gera música nova com cada vez mais autonomia.

Isso levanta questões profundas sobre se as estruturas tradicionais do direito de autor podem assimilar esses desenvolvimentos tecnológicos ou se são necessários modelos inteiramente novos.

A sinfonia inacabada

A jornada desde o caso histórico de Bach até os desafios atuais relativos à tecnologia digital e à IA revela um padrão consistente: a lei do direito de autor precisa perpetuamente acompanhar as mudanças tecnológicas e as evoluções dos conceitos de criatividade.

A história do direito de autor na música é, em diversos aspectos, a história das tentativas de se definir o indefinível: captar em linguagem jurídica a essência elusiva da criatividade musical.

Desde a decisão de Lord Mansfield de que a música "pode ser escrita; e o modo de transmitir as ideias é por sinais e marcas", e desde a incorporação das obras musicais, ainda que sem definição precisa, na Convenção de Berna, até as leis modernas que separam a composição da gravação, cada estrutura jurídica reflete as realidades tecnológicas e as premissas filosóficas de seu tempo.

O desafio para a lei do direito de autor é seguir cumprindo a finalidade fundamental do direito de autor

Neste momento em que nos encontramos no limiar da revolução da IA para a criação musical, o aprendizado mais valioso de toda essa história talvez não seja nenhuma doutrina jurídica em específico, mas antes o reconhecimento de que nossos conceitos de obras musicais, ao contrário de fixos, estão sempre evoluindo.

Imaginemos o que teria acontecido se os negociadores da Convenção de Berna tivessem decidido definir o termo em 1886. A "obra musical" como conceito jurídico nasceu da determinação de Johann Christian Bach para fazer valer seus direitos criativos, e segue transformando-se com cada novo desenvolvimento tecnológico e inovação artística.

O desafio para a lei do direito de autor no século 21 é seguir cumprindo a finalidade fundamental do direito de autor: reconhecer e recompensar a criatividade humana em todas as suas formas. Será necessário para isso não só engenhosidade jurídica, mas também a vontade de reconsiderar os nossos pressupostos mais básicos sobre o que é e música e como ela surge.

O legado de Bach, portanto, não é apenas o precedente que o compositor estabeleceu, mas o debate contínuo que iniciou: uma sinfonia inacabada de pensamento jurídico que segue evoluindo com cada nova revolução tecnológica e cada novo movimento artístico.

Ao enfrentarmos os desafios da IA e de quaisquer tecnologias que a possam seguir, seria bom lembrarmo-nos de que as questões que nos colocamos hoje sobre titularidade e criatividade fazem eco àquelas levantadas pela primeira vez num tribunal londrino quase 250 anos atrás, por um compositor determinado a reivindicar aquilo que acreditava ser seu de direito.

Sobre o autor

Eyal Brook chefia o Departamento de Inteligência Artificial do escritório S. Horowitz & Co e já escreveu muito sobre a autoria musical na era da IA. É pesquisador sênior do Centro Shamgar de Direito Digital e Inovação, da Universidade de Tel Aviv, e professor adjunto, ministrando cursos sobre direito, música e inteligência artificial na Universidade de Reichman e na Ono Academic College.

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