Quase todos os dias lemos notícias sobre a discussão entre empresas de tecnologia e o setor criativo em torno do futuro da inteligência artificial (IA). Isso não é novidade: a tecnologia e a propriedade intelectual (PI) sempre foram vistas como alternativas reciprocamente excludentes. Mas a história nos ensina que essa é uma falsa dicotomia. Como a indústria musical tem sistematicamente demonstrado, existe uma sinergia robusta e positiva entre o avanço tecnológico e o respeito à PI.
Há mais de um século a evolução tecnológica define como artistas e fãs lidam com o setor musical. Hoje, a IA oferece formas totalmente novas de fomentar a criatividade e imaginar novos modelos de negócio. Seu surgimento, no entanto, não vem sem desafios importantes.
Muitos artistas estão vendo seus trabalhos serem usados para treinar modelos de IA e gerar novos conteúdos concorrentes sem autorização, crédito ou contraprestação. Além disso, a voz e a aparência desses criadores estão sendo usadas indevidamente para criar deepfakes. Isso prejudica seriamente a capacidade do artista de ganhar a vida e lhe tira o controle sobre sua própria identidade artística. A voz e a imagem são características únicas e simbolizam quem eles são como artistas. A Sony Music é uma empresa que investe no talento humano e tem o compromisso de proteger o trabalho e a criatividade do artista contra o uso indevido decorrente da IA.
A Sony Music expediu mais de 75 mil notificações de remoção de conteúdo para proteger seus artistas contra deepfakes e covers de IA.
A música é uma das invenções mais preciosas da humanidade, conectando-nos pela emoção, inspirando a inovação e promovendo a cultura. Os avanços na música gravada – dos LPs ao Walkman da Sony, passando pelos CDs, iPods e plataformas de streaming – sempre agitaram o ecossistema musical. Cada salto tecnológico, porém, foi sustentado por parcerias entre gravadoras e empresas de tecnologia que ofereceram novas experiências aos fãs, mantendo o respeito à criatividade do artista.
Agora enfrentamos um novo paradigma com a revolução da IA, alimentada pela síntese e a análise de séculos de conhecimento e criatividade do ser humano. Embora as capacidades dos modelos de IA dependam integralmente do pensamento e das ideias humanas, algumas empresas de IA tentam convencer os governos de que deveriam ter o direito de usar gratuitamente todo o produto da criatividade humana. Seu objetivo é usar esses “dados” para gerar novos conteúdos que concorram com os conteúdos legítimos de serviços de consumo existentes, mas sem o principal custo associado a esse tipo de negócio, que é a remuneração dos criadores. Isso representaria uma distorção de mercado injustificável e sem precedentes. Acreditamos que existe uma abordagem melhor e mais sustentável, assentada no respeito mútuo e na colaboração.
Não é justo tomar o trabalho de alguém sem o seu consentimento e criar produtos que podem aniquilar sua sobrevivência.
Nossa visão de futuro da IA baseia-se em parcerias comerciais inovadoras entre empresas criativas e desenvolvedores de IA. Essas parcerias devem respeitar alguns princípios básicos.
O primeiro é o princípio do consentimento e contraprestação. Os desenvolvedores de IA devem pedir autorização antes de usar o trabalho do artista para treinamento ou clonagem. Não se deve permitir que eles se aproveitem de qualquer obra criativa que encontrem na internet que não tenha sido protegida por seu criador. Sistemas que impõem ao próprio artista o ônus de sinalizar a proibição do uso de suas obras são injustos por princípio e inviáveis na prática. Recompensar criadores por suas contribuições é uma forma de estimular o investimento sustentável na formação de uma nova cultura, o que, por sua vez, incentiva o consumidor a usar a tecnologia.
A atribuição é outro princípio fundamental. Os sistemas de IA devem rastrear e creditar as obras que utilizam, garantindo que os criadores sejam adequadamente reconhecidos e remunerados.
Por fim, temos a transparência. O usuário deve ser informado quando a interação ou conteúdo foi gerado por IA. Isso promove clareza e confiança.
Esses princípios são a base de um ecossistema sustentável que beneficia a tecnologia e os criadores, da mesma forma como parcerias comerciais semelhantes deram origem a 15 anos de inovação e crescimento consistentes decorrentes dos serviços de streaming de música.
A Sony Music já adotou esses princípios em iniciativas de IA éticas e está envolvida em várias negociações sobre o licenciamento de PI para desenvolvedores de IA. Sempre que fizermos isso, dividiremos as receitas provenientes da IA de forma justa com os artistas, assim como fazemos com outros formatos digitais.
Fãs do The Orb and David Gilmour , por exemplo, foram incentivados a usar IA generativa para criar suas próprias combinações de áudio e arte do álbum Metallic Spheres. Em outros projetos, a IA foi usada para alterar imagens de artistas em videoclipes.
Infelizmente, até hoje esse tipo de uso responsável de IA ainda é exceção. Muitos desenvolvedores de IA treinam seus modelos com conteúdo protegido por direitos de autor sem qualquer permissão ou remuneração. Há quem diga que se trata de uso legítimo, mas não existe legitimidade em se apropriar da obra de outra pessoa, sem autorização, para criar produtos comerciais cujas receitas não são compartilhadas com os criadores do produto original.
Além disso, a prática não é sensata, pois para permanecer relevante e interessante, a inovação em IA exigirá um fluxo constante de novos conteúdos humanos para produções de IA. É a combinação de inovação cultural e tecnológica que resultará em sucesso.
Por enquanto, a questão mais urgente em relação ao impacto da IA na música é a clonagem não autorizada de voz, ou seja, gravações deepfake geradas por IA que usam indevidamente as vozes de artistas. Essas “gravações” confundem os fãs e distorcem a identidade e a reputação dos artistas. A Sony Music já expediu mais de 75 mil notificações de retirada para proteger seus artistas contra deepfakes e covers não autorizados de IA, mas o processo de remoção do conteúdo pelas plataformas de streaming é lento, quando acontece.
A lei deve reafirmar claramente que o uso de conteúdo protegido por direitos de autor para treinar sistemas de IA exige licença.
O tempo é fator fundamental. A IA generativa tem crescido rapidamente, inclusive com a geração de músicas e os vídeos fotorrealistas. Felizmente, o mercado comercial de parcerias de IA vem ganhando força, mas como muitas empresas de IA ainda apostam que poderão obter conteúdos gratuitamente, seu desenvolvimento tem sido limitado.
O sucesso da indústria musical com as plataformas de streaming online, fundamentado em um arcabouço legal e acordos de licenciamento claros, oferece um modelo valioso para um resultado equilibrado onde todos saem ganhando. Hoje, mais de 750 milhões de assinantes do mundo inteiro pagam valores acessíveis para acessar vastas bibliotecas de músicas, beneficiando criadores, o setor de tecnologia e os consumidores.
A Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI) desempenha um papel fundamental no desenvolvimento de políticas globais de IA que harmonizem direitos de PI e inovação tecnológica. Uma boa proteção da PI e a inovação no livre mercado caminham juntas para garantir que a IA sirva à humanidade, e não o contrário.
Se trabalharmos juntos para incentivar parcerias comerciais entre desenvolvedores de IA e titulares de direitos de PI, poderemos construir um ecossistema em que a tecnologia amplifique a criatividade humana em vez de substituí-la, protegendo nossa cultura comum e garantindo um futuro sustentável para criadores e inovadores em todos os cantos do planeta.
A seção de propriedade intelectual e tecnologias de vanguarda organiza regularmente o Diálogo da OMPI, um fórum aberto para discutir o impacto de tecnologias de vanguarda sobre todos os direitos de PI e fechar a lacuna de informação existente nessa área complexa e em rápida evolução.
Aviso: as opiniões expressas neste artigo são dos autores e não refletem necessariamente as posições da OMPI ou de seus Estados membros .