De acordo com o Loud & Clear , o relatório anual do Spotify sobre a economia da música, artistas do mundo inteiro estão alcançando um sucesso sem precedentes em diversos idiomas e regiões. Em 2024, juntos, os artistas que geraram pelo menos US$ 1 milhão em royalties no Spotify gravaram músicas em 17 idiomas diferentes, mais que o dobro de 2017. A região do Oriente Médio e Norte da África (MENA) registrou crescimento recorde nas receitas de música gravada, colocando-a no topo da indústria musical global.
Em conversa com a Revista da OMPI, Imad Mesdoua, diretor de assuntos públicos do Spotify para o Oriente Médio e África, explica os principais fatores por trás do crescimento do setor musical da região e revela a “fórmula secreta” que ajuda a plataforma de streaming a transformar talentos e artistas locais em fenômenos globais.
Você é um ex-analista político e um autodeclarado pan-africanista. O que o atraiu para o Spotify?
É um trabalho dos sonhos porque, no meu cargo, eu faço inúmeras coisas que considero importantes. Faz muito tempo que uso o Spotify e sempre senti uma conexão muito forte com a música, as artes e questões políticas relacionadas à cultura e identidade. Eu venho da Argélia, um país que fica na interseção entre a África e o mundo árabe. Viver nessas duas regiões despertou em mim um grande desejo de unir culturas e amplificar vozes locais. O que mais me fascina nesse cargo é a oportunidade de apoiar indústrias criativas nas regiões que fizeram de mim quem eu sou.
Apesar dos desafios econômicos, a indústria musical vem registrando níveis recordes de crescimento na região do Oriente Médio e Norte da África. O que explica esse sucesso repentino?
Essas estatísticas são muito animadoras e esse crescimento não é fruto do acaso: ele vem sendo impulsionado há muito tempo por uma série de catalisadores.
Em primeiro lugar, os fundamentos desse tipo de crescimento explosivo são inegáveis. Temos uma população muito jovem que é altamente conectada, digitalizada e ligada à música, tanto local como internacional. É uma região repleta de talentos criativos e com uma crescente demanda interna por esses artistas.
Em segundo lugar, as plataformas de streaming tiveram um papel transformador. Quando analisamos os dados mais a fundo, observamos que os serviços de streaming respondem por praticamente a totalidade da receita da indústria musical na região do MENA. Artistas de todas as categorias e gêneros estão sendo beneficiados por uma maré positiva.
De acordo com o Global Music Report da IFPI, a região do Oriente Médio e Norte da África (MENA) é o mercado musical que mais cresce no mundo, registrando alta de 22,8% nas receitas de música em 2024
As receitas mundiais de música gravada cresceram 4,8% em 2024, atingindo US$ 29,6 bilhões
As receitas de streaming respondem por impressionantes 99,5% do mercado musical da região do MENA
Os usuários da região estão entre os que mais consomem música no mundo, com uma média de 27 horas semanais, cerca de seis horas a mais que a média mundial
O terceiro catalisador específico da região do MENA é o aumento substancial dos investimentos públicos nas indústrias criativas nos últimos anos. Em mercados como a Arábia Saudita e os Emirados Árabes Unidos, grandes programas governamentais estão injetando bilhões de dólares em diferentes segmentos da economia criativa, inclusive na criação da infraestrutura necessária para que os artistas cresçam, façam turnês, gravem e exibam sua música. Esse movimento vem catapultando o crescimento do setor.
O último fator que eu mencionaria é o papel específico que desempenhamos. Desde que entrou nos mercados da região do MENA em novembro de 2018, o Spotify vem dedicando grande atenção ao que chamamos de estratégia editorial e de curadoria, cujo objetivo é promover a visibilidade de artistas locais não só no mercado interno, mas também no cenário internacional.
O que o Spotify tem conversado com as autoridades em relação a investimentos públicos no setor?
Uma das minhas funções é abordar uma série de questões que afetam nossos negócios, as indústrias criativas e os criadores em geral. Meu trabalho é garantir um diálogo construtivo e contínuo com os governos para a construção de um sistema regulatório que promova o desenvolvimento e o crescimento da cultura.
Os temas que discutimos são muito variados. Um deles é a reforma do sistema de direitos de autor. Governos de toda a região já começaram a atualizar suas leis nacionais para melhor adequá-las ao funcionamento atual da indústria musical e à evolução do ecossistema digital.
Nessas regiões, ainda há algumas lacunas na adoção de tratados da OMPI, como o Tratado da OMPI sobre Direitos Autorais e o Tratado da OMPI sobre Interpretações ou Execuções e Fonogramas, que são os pilares do setor da música digital. Em nossas conversas com autoridades do governo, tentamos incentivar reformas práticas, de fácil aplicação e alinhadas às melhores práticas internacionais e tratados de direitos de autor no setor musical.
Também estamos discutindo uma série de questões adjacentes às reformas dos direitos de autor ou decorrentes delas, como melhorias relacionadas a metadados e a sistemas de transparência e geração de relatórios, o que acaba por facilitar a arrecadação e distribuição de royalties para o setor editorial de música e outras áreas. Esse é o primeiro grande eixo temático.
A segunda grande categoria é o que eu chamaria de desafios operacionais que plataformas como o Spotify enfrentam nessas regiões. Essa categoria inclui, mais especificamente, sistemas de licenciamento de plataformas, questões tributárias e outras regulamentações do setor de tecnologia. Tentamos promover uma maior flexibilidade e compreensão da singularidade do modelo de negócios das plataformas de streaming digital.
O relatório Loud & Clear do Spotify mostra que alguns artistas estão recebendo mais royalties do exterior do que de seus países de origem. Na sua opinião, por que isso acontece?
Uma das vantagens do Spotify é ser uma plataforma mundial. Segundo um levantamento estatístico, uma em cada 13 pessoas no mundo usa a nossa plataforma, o que permite que artistas regionais tenham acesso a uma comunidade global de usuários. Nossos resultados para o primeiro trimestre de 2025 mostram um total de 268 milhões de assinantes pagos e 678 milhões de usuários ativos mensais, representando um aumento de 10% em relação ao ano anterior.
Ao mesmo tempo, com milhares de faixas sendo lançadas todos os dias na nossa plataforma, pode ser difícil atingir audiências globais. O elemento de curadoria que estamos implementando localmente contribui muito para garantir que os artistas sejam beneficiados pela maré positiva que eu citei anteriormente. Esse apoio, somado a outras iniciativas, cria novas oportunidades para os artistas ampliarem suas bases de fãs.
Os números da última edição do Loud & Clear ilustram essa dinâmica. Se analisarmos os royalties pagos pelo Spotify à indústria local da Nigéria em 2024, o valor chegou a 58 bilhões de nairas (cerca de US$ 36 milhões). A cifra é o dobro da registrada em 2023. Na África do Sul, foram pagos quase 400 milhões de rands (cerca de US$ 21 milhões) em 2024 – mais uma vez, o dobro do valor de 2022. Ouvintes de fora dos mercados nacionais dos artistas responderam por uma parcela considerável dessas receitas, o que confirma que a exposição de talentos locais a uma audiência global gera impactos econômicos positivos.
Fale um pouco sobre a estratégia editorial e de curadoria do Spotify que você mencionou.
A descoberta e a personalização são dois elementos fundamentais da fórmula secreta do Spotify. Na nossa plataforma, nenhuma experiência é igual a outra, e isso se deve à experiência personalizada que oferecemos a cada usuário. Um dos grandes responsáveis por essa hiperpersonalização são nossos sofisticados algoritmos, mas a curadoria humana também é essencial nesse sentido.
Trabalhamos com editores musicais do mundo inteiro que são incrivelmente talentosos e têm um conhecimento profundo das cenas musicais locais. São profissionais que vivem e respiram música e conhecem não só o catálogo dos artistas, mas também os lançamentos que estão por vir. Esses editores desempenham um papel fundamental por estarem conectados ao ecossistema musical local, graças à estreita relação que mantêm com artistas e suas equipes e os demais agentes do setor.
Poderia dar um exemplo de como isso funciona na prática?
Gêneros como o afrobeats, originário da Nigéria, e o amapiano, da África do Sul, vêm ganhando popularidade mundial. Assim, nossos editores criam playlists com músicas desses gêneros na nossa plataforma para dar destaque a elas e ajudar os artistas a alcançar novos públicos ao redor do mundo. Além disso, programas editoriais do Spotify como o Radar Africa ajudam artistas em ascensão oferecendo suporte dentro da plataforma e promovendo campanhas externas de marketing. A playlist Radar Africa já incluiu estrelas como Tems, Tyla e Ayra Starr no auge de suas carreiras.
No Oriente Médio e Norte da África, as cenas musicais locais também estão em alta. É o caso do rap no Marrocos e no Egito e dos sons de pop e khaliji nas regiões do Levante e do Golfo. A ascensão desses gêneros se reflete em playlists emblemáticas, como Melouk El Scene, Yalla e Abatera. Programas como Equal Arabia também dão destaque a artistas mulheres, incluindo Assala Nassri, Balqees e Angham, para ampliar sua audiência nacional e internacional.
Parece uma espécie de estação de rádio moderna, mas com dados. Como isso beneficia diretamente os artistas?
Não exatamente. Ao contrário do rádio, o Spotify não é uma plataforma de escuta passiva, já que os usuários escolhem ativamente o que querem ouvir. Isso nos dá uma visão muito mais clara das preferências reais das pessoas. É uma diferença muito grande. O Spotify também oferece aos artistas ferramentas que os ajudam a assumir o controle do desenvolvimento de suas carreiras.
Temos uma plataforma, chamada Spotify for Artists, que permite que o artista envie vídeos promocionais e, mais importante ainda, monitore os dados por trás de sua audiência. Assim, os artistas podem se conectar com os fãs e saber de onde são e por quanto tempo interagem com suas músicas, além da possibilidade de visualizar o desempenho de cada faixa em tempo real. Com dados desse tipo, os artistas e suas equipes têm o poder de impulsionar sua carreira de forma estratégica, algo que o rádio não pode oferecer.
Quais são as perspectivas para o Oriente Médio e Norte da África? E quais são alguns dos novos talentos promissores da região?
Estou convicto de que a região do MENA e a África continuarão a moldar a cultura musical global. É difícil expressar em palavras a minha emoção em ver artistas dessa região despontando na cena internacional, seja Tyla e Amaarae se apresentando no festival Coachella ou o artista saudita Mishaal Tamer estourando nas paradas de sucesso da América Latina.
Este ano, fui assistir a uma apresentação do Coldplay em Abu Dhabi. Quem abriu os shows da turnê mundial da banda foi a cantora chilena-palestina Elyanna. Às vezes precisamos parar e reconhecer como momentos como esse são magníficos.
Eu tento ao máximo ficar atento a novos artistas da região, mas um bom caminho para descobrir a próxima onda de talentos promissores é começar pelas nossas playlists Radar Arabia ou Radar Africa . A criatividade que emana dessas playlists é extraordinária e vale cada segundo de tempo investido. O futuro é realmente brilhante!
Os eventos que estão acontecendo em nossas regiões são a prova de que a música vai muito além do entretenimento. O setor musical vem impulsionando o crescimento econômico, gerando empregos e transformando indústrias locais em potências globais. A música também é a representação mais fiel do chamado “soft power” (ou poder brando), conectando pessoas e culturas quando mais precisamos. Para mim, é uma imensa satisfação poder contribuir com isso através do meu trabalho, ainda que modestamente.
Esta entrevista é uma combinação resumida de duas conversas. Encontre todos os artigos mais recentes com um foco na música nesta edição especial da Revista da OMPI.