“Tenha tudo. Não seja dono de nada” era o lema do Napster. Os modelos de IA generativa de hoje parecem dizer “Pegue tudo. Não credite ninguém”. Ainda assim, estruturas mais justas podem surgir, diz a professora María L. Vázquez. Formada em Harvard, a advogada, que trabalhou na Virgin Music nos anos 1990, viu os primeiros sistemas de compartilhamento de arquivos darem lugar a legítimas plataformas de streaming. Em entrevista à Revista da OMPI, Vázquez analisa as lições sobre direitos autorais que podemos aprender com as rupturas do passado.
Nos anos 1990 eu, uma jovem advogada da Virgin Music, em Londres, testemunhava de perto o auge da indústria musical. O escritório no prédio Kensal House vivia em burburinho: o selo celebrava contratos de gravação e publicação quase que semanalmente. O famoso contrato de US$ 45 milhões entre a Virgin e os Rolling Stones, em 1991, atestou a confiança da gravadora na capacidade de recuperação do valor em vendas de discos. Ainda assim, o setor estava prestes a sofrer um abalo sem precedentes.
O Napster surgiu na cena musical em 1999 e mudou a maneira de consumir música. A plataforma de compartilhamento ponto a ponto permitia que os usuários trocassem arquivos digitais de música diretamente entre si. Pela primeira vez, qualquer pessoa com uma conexão com a internet poderia acessar músicas instantaneamente, sem esforço e de graça, ameaçando todo o modelo de negócio da indústria musical. As vendas de discos e CDs murchavam, enquanto os serviços de compartilhamento de arquivos floresciam.
Inicialmente, a Recording Industry Association of America (RIAA) respondeu à pirataria digital com uma estratégia jurídica que incluiu o ajuizamento de centenas de ações judiciais contra usuários individuais. Um dos casos mais bem conhecidos foi o de Jammie Thomas-Rasset, condenado a pagar US$ 222 mil por baixar e compartilhar 24 músicas protegidas por direitos de autor por meio do serviço de compartilhamento de arquivos Kazaa.
Mas, mesmo assim, o setor musical não conseguia impedir os downloads ilegais. O Napster chegou a ter 80 milhões de usuários antes de encerrar suas atividades em 2001. Praticamente todas as músicas já gravadas no mundo estavam disponíveis online e, o que é mais importante, o consumidor se acostumou com essa nova forma de acessar músicas.
Assim como as espécies, os setores de mercado também precisam se adaptar para sobreviver
A criação do iPod e da iTunes Store pela Apple no mesmo ano em que o Napster fechou as portas representou uma transformação. Ao oferecer músicas digitais licenciadas por US$ 0,99, a Apple mostrou que o consumidor estava disposto a pagar pela música online, desde que o preço fosse justo e a obra pudesse ser acessada por uma plataforma fácil de usar.
Assim se estabelecia a base para a próxima grande mudança: o streaming. Plataformas como o Spotify, criado em 2008, ofereciam ao usuário acesso a um vasto catálogo musical pelo modelo de assinatura, sem que fosse necessário comprar nada.
Dessa vez a indústria não lutou contra a mudança. Embora de início muitos selos tenham insistido em manter os formatos físicos, como os CDs, posteriormente acabaram aceitando o streaming. Atualmente, o streaming é responsável pela maior parte da receita do setor, refletindo uma importante lição da teoria da evolução: assim como as espécies, os setores de mercado também precisam se adaptar para sobreviver.
O surgimento da IA
Avançamos para 30 de novembro de 2022. A OpenAI lança o ChatGPT, instigando o mesmo pânico no setor provocado pelo Napster mais de 20 anos antes. Mas agora havia mais em jogo.
Algumas empresas novas de “IA criativa” obtiveram as licenças para os dados durante os anos 2010, e empresas de IA éticas ainda agem assim. Por outro lado, enquanto muitas outras empresas de IA generativa corriam para criar seus sistemas, grandes volumes de dados – que incluíam várias obras protegidas por direitos de autor e direitos conexos –, eram capturados sem muita preocupação com o rastreamento das fontes que alimentavam seus modelos. Na música, isso se traduziu no uso de obras musicais e gravações fonográficas, batidas sintetizadas, letras, progressões de acordes e padrões musicais existentes.
Parecia que estávamos diante de uma corrida do ouro digital: pegue agora, pergunte depois. A enorme quantidade de dados coletados praticamente inviabilizou o rastreamento e o crédito dos criadores originais. Remunerá-los, então, nem pensar. Isso gera um conflito cada vez maior entre as empresas de IA generativa e os donos de conteúdos.
Enquanto o Napster desafiava a forma como a música era distribuída e vendida, as criações, faixas e apresentações deepfake geradas por IA ameaçam os próprios alicerces da criação e da autoria musical. Em ambos os casos, a comunidade criativa se insurgiu, demonstrando preocupação com o uso não autorizado de suas obras e a erosão de seus direitos de propriedade intelectual.
No cerne das ações judiciais, a questão: o treinamento de IA pode ser considerado uso legítimo de materiais protegidos por direitos de autor?
Assim como ocorreu na época do Napster, os processos começaram a aparecer rápido. O lançamento de “Heart on My Sleeve” em abril de 2023, com deepfakes não autorizados das vozes de Drake e The Weeknd, serviu de estopim para toda a indústria musical. Foram muitas reclamações. A música foi retirada das plataformas logo após o lançamento, mas o impacto continuou reverberando.
Em abril de 2024, músicos e artistas respeitados, como Billie Eilish, Nicki Minaj e Pearl Jam, assinaram uma carta aberta denunciando o treinamento de IA irresponsável como um ataque direto à criatividade humana. Depois, em junho de 2024, a RIAA anunciou que a Universal Music Group, a Sony Music Entertainment e a Warner Records haviam ajuizado uma ação contra as startups de IA Suno e Udio, acusando-as de usar conteúdo protegido por direitos autorais para treinar seus modelos.
No cerne das ações judiciais, a questão fundamental: o treinamento de IA pode ser considerado uso legítimo de materiais protegidos por direitos de autor? As gigantes da tecnologia dizem que sim, comparando o treinamento de IA a humanos quando leem livros. Entretanto, ao contrário dos EUA e outros países de common law, a maioria dos países de tradição jurídica românico-germânica (o chamado civil law) adota exceções muito restritas, permitindo o uso não autorizado em pouquíssimos casos. Ainda assim, o resultado de casos relevantes ocorridos nos EUA, como New York Times contra OpenAI, e de litígios entre selos musicais e empresas de música por IA, reverberá globalmente e, com grandes chances, influenciará o licenciamento e a normatização do setor no mundo inteiro.
No entanto, enquanto os embates judiciais acontecem, a indústria musical continua a explorar outra solução, assim como aconteceu com a final aceitação das plataformas de streaming. Em vez de tentarem frear a ascensão da IA, alguns artistas e profissionais da música estão buscando formas de usá-la em seu favor.
Estratégias de sobrevivência na era da IA: litigar, licenciar ou legislar?
Em abril de 2023, Grimes anunciou que dividiria 50% dos royalties com os criadores de “qualquer música de sucesso gerada por IA” que utilizasse sua voz. Segundo relatou o Financial Times , em junho de 2024 empresas como Sony, Warner e Universal estariam em negociações com o YouTube, do grupo Google, para licenciar seus acervos para fins de treinamento, possivelmente em troca de um bom valor em dinheiro. Mais recentemente, em junho de 2025, a Bloomberg relatou a existência de propostas de acordo entre alguns selos e a Suno e a Udio, para a decepção de empresas que sempre optaram por trabalhar com dados de treinamento licenciados e seguem nessa prática.
O compartilhamento não autorizado entre pessoas, oferecido pelo Napster, foi o precursor das plataformas legítimas. Hoje, no entanto, o uso não regulamentado de materiais protegidos por direitos autorais pela IA generativa ainda não mostrou que tipo de estruturas autorizadas precisam surgir em grande escala para garantir que o treinamento de IA respeite os criadores, creditando-os e remunerando-os.
“Tenha tudo. Não seja dono de nada” era o lema do Napster. Os modelos de IA generativa de hoje parecem dizer “Pegue tudo. Não credite ninguém”. A diferença está na dimensão e na rastreabilidade. Enquanto o Napster permitia a identificação e o acesso de músicas e o Spotify oferece “encontrabilidade”, o treinamento de IA promove a invisibilidade.
A questão da invisibilidade (ou, mais precisamente, da encontrabilidade) é importante. Apesar de milhares de novas faixas serem incluídas diariamente em plataformas como o Spotify, esses serviços ainda oferecem encontrabilidade, ajudando o artista a construir seu público. À medida que a IA generativa conduz a criação musical a uma dimensão inédita, a individualidade do artista se perde no processo de treinamento.
Se o objetivo é estabelecer parcerias verdadeiras com os criadores, os sistemas de IA precisam alavancar a tecnologia que melhora a encontrabilidade para manter a visibilidade e a competitividade dos artistas humanos. O artista pode ser mais propenso a participar de dados de treinamento de IA se suas contribuições forem creditadas e reconhecidas.
OGCs podem ter papel fundamental nas tratativas com empresas de IA generativa como representantes de seus associados
Além de esperar o devido crédito pelas empresas de IA, os criadores que negociam essas licenças voluntárias também querem manter algum tipo de controle sobre suas obras e receber a justa remuneração por elas. Em um mundo ideal, essas licenças respeitariam os direitos do criador e fomentariam a criatividade, ao mesmo tempo que proporcionariam aos desenvolvedores de IA o acesso a conteúdos sem incerteza jurídica. No entanto, considerando a enorme quantidade de dados necessários para treinar modelos de IA e a falta de estruturas padronizadas e mecanismos colaborativos, parece verdadeiramente impossível garantir a obtenção de licenças voluntárias para cada trabalho usado na captura de dados.
Dessa forma, as organizações de gestão coletiva (OGCs) podem ter papel fundamental nas tratativas com empresas de IA generativa como representantes de seus associados. A tecnologia blockchain, já empregada por algumas OGCs para aprimorar a precisão dos dados para associados, também foi elogiada por seu potencial para monitorar dados de treinamento, simplificar o licenciamento e promover uma remuneração justa.
O licenciamento voluntário continua a ganhar espaço mas, para evitar a total dependência de um processo lento e complexo, alguns estudiosos sugerem como opçãoa previsão legal de licenciamento para aprendizagem de máquina. O licenciamento previsto em lei poderia definir o padrão do acesso a obras protegidas, reduzindo os custos das transações, oferecendo clareza jurídica e garantindo uma remuneração justa. No entanto, enfrenta-se a resistência de titulares de direitos e criadores. Qualquer solução que pretenda atender a todos precisa ser cuidadosamente equilibrada para, assim se espera, incentivar a inovação em IA e proteger o papel vital dos autores humanos.
De qualquer forma, devemos aprender com as lições do passado. Para a indústria musical, o desafio é evitar resistir à inovação e, ao mesmo tempo, modelá-la de forma que respeite a criatividade, premie o talento e gere confiança entre artistas e tecnologia.
Para aqueles por trás dos sistemas de IA atuais, talvez seja interessante usar os conhecimentos tecnológicos para solucionar o dilema que eles próprios criaram, desenvolvendo ferramentas para ajudar o artista a entender, administrar e licenciar suas obras para treinamentos de IA de forma transparente, íntegra e empoderadora. Assim como a derrocada do Napster acabou possibilitando o surgimento de modelos como o iTunes e o Spotify, o sucesso de longo prazo dependerá da capacidade de construir respostas mais ponderadas que honrem os direitos dos criadores. Parafraseando Otis Redding, os artistas só querem “um mínimo de respeito”.
Sobre a autora
A professora María L. Vazquez é reitora da Faculdade de Direito da Universidade de San Andrés (UdeSa), em Buenos Aires, na Argentina. Também é diretora do Programa de Mestrado Conjunto UdeSA-OMPI na área de PI e inovação e diretora do Centro de Propriedade Intelectual e Inovação da UdeSA (CPINN). Formada em Direito pela Universidade de Harvard, trabalhou na Virgin Music, em Londres, e na EMI Records, em Nova York, antes de se tornar sócia do escritório de advocacia Marval O’Farrell & Mairal, em Buenos Aires.
Aviso: A Revista da OMPI tem como objetivo ajudar a ampliar o conhecimento público sobre propriedade intelectual e o trabalho da OMPI e não constitui um documento oficial da organização. As opiniões expressas aqui são do autor e não refletem as posições da OMPI ou de seus Estados membros.