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A importância de termos FRAND: por que a padronização de tecnologias é tão complexa

András Jókúti,Diretor, Divisão de Direito de Patentes e Tecnologia, OMPI

9 de Dezembro de 2024

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Você se lembra de um episódio do Charlie Brown em que Clara arrasta Snoopy e, contra a vontade do pobre cãozinho, dá um banho nele e o veste para tomar chá, tudo isso enquanto canta “a importância fundamental da amizade”?

O mundo das patentes essenciais tem uma dinâmica semelhante, mas não para tomar chá com amigos. O fundamental aqui é oferecer licenciamento em termos justos, razoáveis e não discriminatórios (FRAND, na sigla em inglês).

Em resumo

  • Patentes essenciais exigem licenciamento em termos FRAND: justos, razoáveis e não discriminatórios.

  • O problema, porém, é que nem sempre há consenso quanto ao conteúdo de uma verdadeira licença FRAND.

  • A resolução alternativa de controvérsias, as soluções baseadas no mercado e uma nova estratégia de patentes essenciais podem oferecer soluções.

Os titulares de patentes e os implementadores de padrões tecnológicos, como o 5G e o Wi-Fi, são fundamentais um para o outro. Eles são, respectivamente, licenciantes e licenciados. Mas quando surge uma controvérsia, ambos podem se sentir negligenciados. Essas duas partes tendem a se ver como o Snoopy, sentindo que a ideia de amizade (e de FRAND) do outro é bem diferente da sua.

A padronização é um tema de relevância global. Os padrões tecnológicos são essenciais para garantir a segurança e a interoperabilidade de diferentes produtos e serviços disponibilizados por diferentes empresas. Em outras palavras, os padrões permitem que dispositivos distintos funcionem em conjunto, comunicando-se entre si e conectando-se a equipamentos de terceiros e operando com segurança nas mesmas plataformas, independentemente do modelo ou marca.

Pense nas diferentes gerações tecnológicas de aparelhos celulares, como 3G e 4G. Imagine os principais padrões de conectividade, como Bluetooth, USB e Wi-Fi. Sem esses padrões, como os fabricantes poderiam garantir que nossos smartphones e outros dispositivos operassem nas mesmas redes ou funcionassem em sincronia?

Sem os padrões, como poderiam os fabricantes garantir que os smartphones e outros dispositivos operassem nas mesmas redes ou funcionassem em sincronia?

Cada uma dessas plataformas padronizadas é um enorme avanço em termos de convergência tecnológica. E para assegurar esses avanços, são necessárias inúmeras transações de propriedade intelectual (PI). Mas o que pode parecer um padrão simples na verdade abrange uma ampla variedade de patentes e interesses. Logo retornaremos ao nosso amigo Snoopy. Por ora, vamos conhecer o ciclo vital das patentes essenciais.

Primeira fase: padronização

As organizações normatizadoras criam condições para que seus membros desenvolvam padrões juntos e definam em comum acordo suas especificações técnicas. Esse tipo de ambiente agiliza o desenvolvimento de padrões globalmente relevantes. Uma vez definidos os padrões, o consumidor não precisa se preocupar se seus dispositivos atenderão a requisitos básicos ou se funcionarão em conjunto.

Tudo isso forma a base de um mercado competitivo, pois permite que o consumidor fundamente sua decisão de compra em fatores que vão além de compatibilidade e funcionalidades básicas, como preço, recursos adicionais ou design. Dessa perspectiva, a colaboração entre concorrentes em órgãos normatizadores pode ser vista como uma história de sucesso que resultou em um alto grau de inovação e em algumas das tecnologias mais adotadas de todos os tempos.

Existe um atrito inerente: o êxito dos padrões depende de sua ampla aceitação, ao passo que o sistema de patentes foi concebido para recompensar a inovação.

Tomemos como exemplo a compactação de vídeos e os padrões de conectividade. Assistimos a filmes em TVs de alta definição que usam um padrão MPEG e conectamos o smartphone ao carro via Bluetooth. Enquanto isso, as redes 5G continuam criando novas oportunidades para setores que vão da aviação à tecnologia médica, além de propiciar o surgimento de muitos produtos, como a realidade virtual e aumentada em tempo real e as comunicações entre máquinas. Mais produtos significam mais implementadores e, com isso, mais possíveis licenciados de patentes essenciais.

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A definição de padrões, no entanto, não ocorre sem desafios. As empresas do setor propõem incluir soluções desenvolvidas em seus próprios laboratórios. É claro, elas obtêm seus direitos de propriedade intelectual e esperam o retorno do investimento. Para ilustrar: no ano passado, os parceiros organizacionais que trabalham com os padrões de banda larga móvel (a partir do 3G em 1998, conjuntamente denominados 3GPP) se comprometeram a criar o padrão 6G. Essas organizações já estão depositando pedidos de patente para garantir o pioneirismo no registro dos elementos da plataforma criados por suas equipes de pesquisa.

As patentes essenciais protegem as invenções necessárias à implementação de padrões tecnológicos. Por isso, uma empresa que lançar um produto em conformidade com o padrão inevitavelmente precisará usar a tecnologia patenteada por outras empresas, o que exigirá licenciamento. E aqui começa a segunda fase.

Segunda fase: licenciamento

Uma vez finalizado e lançado o padrão tecnológico, os desenvolvedores de produtos que planejam implementá-lo precisam obter autorização para usar a tecnologia protegida. E isso não se restringe aos fabricantes de smartphones. Uma empresa que fabrica fones de ouvido com Bluetooth ou um medidor inteligente que afere o consumo de energia elétrica via Wi-Fi, por exemplo, precisa obter o licenciamento das patentes essenciais correspondentes.

Existe, porém, um atrito inerente. O sucesso dos padrões depende de sua ampla aceitação, ao passo que o sistema de patentes foi concebido para recompensar a inovação. Assim, se por um lado a tecnologia padronizada é disponibilizada aos implementadores, por outro, os incentivos econômicos são direcionados aos titulares das patentes. Em outras palavras, os titulares de patentes essenciais querem receber royalties de quem usa sua tecnologia, enquanto os fabricantes de produtos querem pagar o menor preço possível e ficar longe de brigas judiciais.

E tem mais: um único padrão pode englobar várias patentes essenciais, até mesmo centenas ou milhares delas. Essas patentes têm como titulares não uma, mas várias empresas. Não surpreende, portanto, que os termos de licenciamento de patentes essenciais sejam uma questão sensível. Se os royalties de patentes forem muito altos, a produção ficará mais cara, mas, por outro lado, os inovadores precisam ser justamente remunerados para que o trabalho de pesquisa e desenvolvimento valha a pena. Qual é, então, a solução?

Bons sistemas de licenciamento são fundamentais para que tenhamos o equilíbrio correto entre os interesses dos titulares de patentes e dos implementadores. É por isso que as políticas de PI da maioria dos órgãos normatizadores exigem que os criadores declarem a vontade de licenciar suas patentes essenciais em condições justas, razoáveis e não discriminatórias, ou seja, assumam um compromisso FRAND. Algumas organizações chegam a exigir uma lista detalhada das patentes que seus titulares consideram essenciais ao padrão que desenvolveram.

As implicações do compromisso FRAND não são interpretadas da mesma forma em todas as jurisdições.

Como tecnologias protegidas são usadas por qualquer pessoa que implemente produtos em conformidade com o padrão, existe a expectativa de que as licenças estejam disponíveis a um preço acessível. Aqui, os legítimos interesses de titulares de patentes essenciais e implementadores de padrões devem ser cuidadosamente avaliados, tendo-se em mente que ambas as partes podem estar nos dois lados simultaneamente, como licenciador e licenciado um do outro, o que de fato costuma acontecer.

A questão é que fiscalizar o cumprimento do compromisso FRAND e determinar o verdadeiro significado desses termos foge à competência dos órgãos normatizadores. Além disso, as próprias empresas normalmente declaram grandes portfólios de patentes essenciais, muitas vezes antes da finalização do padrão. Essa incerteza do sistema, aliada à falta de uma avaliação imperativa sobre o que é verdadeiramente essencial, resulta em pouca transparência exatamente sobre os direitos de PI que realmente precisam ser licenciados na implementação de um padrão.

Também fica evidente que as implicações dos compromissos FRAND não são interpretadas da mesma forma em todas as jurisdições. Há diferenças até nos métodos usados para calcular royalties em regiões diferentes. As tratativas de licenciamento, portanto, podem dar margem a conflitos ou, pelo menos, a visões distintas sobre o que é justo e razoável em um licenciamento global que abrange todas as patentes do portfólio do titular de uma patente essencial.

Havendo dissenso entre as partes, surge a terceira fase. E é aqui que Clara e Snoopy começam a dançar freneticamente.

Terceira fase: controvérsias

Em casos contenciosos de licenciamento de patentes essenciais e, consequentemente, em litígios, ambas as partes alegam que seus termos são FRAND (ou que os termos da outra parte não o são), questionam a essencialidade ou a validade das patentes essenciais, refutam a boa-fé de seus parceiros e, em regra, afirmam ser o pobre cãozinho vítima da conduta abusiva da implacável Clara. Resultado? Muita discussão e custos de transações altíssimos.

Os implementadores temem a ameaça do uso de medidas judiciais para lhes extrair royalties acima do que seria considerado FRAND, ao passo que os titulares de patentes essenciais reclamam que aqueles usam suas patentes sem licença, para fugir do pagamento de taxas justas.

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Os riscos não são inofensivos como um desenho animado. O acesso a mercados inteiros pode ser bloqueado com uma ordem judicial e, considerando a ampla adoção dos padrões, até mesmo um centavo por produto pode resultar em enormes lucros ou prejuízos. Essa é a razão pela qual a base adequada para o cálculo de royalties é um assunto que desperta tantas discussões acaloradas. Basta pensar no tamanho dos setores de smartphones e automóveis para perceber a dimensão do problema. De fato, há uma imensa diferença se a taxa de licenciamento FRAND se baseia no menor componente patenteado comercializável (como um microchip) ou no produto propriamente dito (como um carro).

Para dificultar ainda mais, a globalização das cadeias de valor (e dos mercados) resulta em necessidades de licenciamento global e disputas entre países, enquanto a convergência de segmentos da indústria antes separados em uma economia digital causa mais problemas. Práticas que funcionavam nos setores de tecnologia da informação e comunicações (TIC), por exemplo, podem ser questionadas quando surgem novos atores na arena da conectividade, como montadoras de veículos.

Restabelecer a amizade – e condições FRAND

Quando contendores – que se sentem particularmente como Snoopy e Clara – não conseguem alinhar seus posicionamentos, duas coisas hoje podem aliviar parte da dor do licenciamento de patentes essenciais.

Em primeiro lugar, para as partes abertas a submeter suas diferenças a esse tipo de procedimento, a Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI) oferece vários meios alternativos de resolução de controvérsias.

Em segundo lugar, estão surgindo soluções de mercado nas quais uma só organização ou plataforma consegue oferecer taxas de licenciamento claras para combinações de patentes essenciais. Essa abordagem pode simplificar drasticamente as transações. As combinações de patentes podem acalmar mercados competitivos se um número suficiente de titulares de patentes essenciais quiser participar. Por sua vez, os usuários de tecnologia geralmente aceitam os termos oferecidos em troca de paz de espírito.

As jurisdições onde há muitos conflitos envolvendo patentes essenciais vêm explorando opções legislativas e ligadas a políticas. Dada a falta, até o momento, de intervenções governamentais eficazes, muitos preferem a abordagem de mercado. As iniciativas que envolvem políticas e consultas, no entanto, podem revigorar o debate. Melhorar a transparência é requisito mínimo e vital para o cenário das patentes essenciais.

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Considerando os desafios discutidos acima, parece existir uma necessidade crescente por informação, orientação, debate e serviços em âmbito internacional. Em vista da natureza transfronteiriça da implementação de tecnologias padronizadas e do licenciamento de patentes essenciais, organizações como a OMPI podem complementar as políticas nacionais e regionais nessa área.

A OMPI publicou recentemente sua estratégia trienal para patentes essenciais. O documento identifica quatro grupos de iniciativas nas quais a organização trabalhará em colaboração com diferentes interessados. Entre os objetivos estão criar uma plataforma de diálogo global; centralizar conhecimentos e dados; servir não só como local de resolução alternativa de conflitos mas também de facilitação de acordos; e prestar serviços que possam ser acessados diretamente pelos interessados.

E o que isso tem a ver com Snoopy e Clara? Bem, talvez “a importância fundamental da amizade” seja perfeitamente aplicável ao universo FRAND. Os atores do setor realmente precisam uns dos outros para cumprir suas promessas de beneficiar o consumidor por meio da padronização baseada em inovação. Cabe aos formuladores de políticas, juntamente com organizações intergovernamentais, promover um ambiente em que todos possam dançar (ou tomar chá) porque querem, e não porque foram obrigados a isso.