- APRESENTAÇÃO
- Decreto Legislativo n.º4/2003 de 18 de Novembro
- PREÂMBULO
- LIVRO I PARTE GERAL
- TITULO I GARANTIAS E APLICAÇÃO DA LEI PENAL
- TITULO II DO FACTO PUNÍVEL
- TITULO III DAS CONSEQÊNCIAS JURÍDICAS DO FACTO PUNÍVEL
- CAPÍTULO I DISPOSIÇÕES GERAIS
- CAPÍTULO II DAS PENAS
- Secção IPENA DE PRISÃO
- Secção IISUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA DE PRISÃO
- Secção IIILIBERDADE CONDICIONAL
- Secção IVPRISÃO DE FIM-DE-SEMANA
- Secção VPENA DE MULTA
- Secção VITRABALHO A FAVOR DA COMUNIDADE
- Secção VIIPENAS ACESSÓRIAS E EFEITOS DAS PENAS
- Secção VIIIPENAS APLICÁVEIS ÀS PESSOAS COLECTIVAS
- Secção IXDA DETERMINAÇÃO E APLICAÇÃO DAS PENAS
- CAPITULO III MEDIDAS DE SEGURANÇA
- CAPITULO IV OUTRAS CONSEQUÊNCIAS DO FACTO PUNÍVEL
- TITULO IV EXTINÇÃO DA RESPONSABILIDADE CRIMINALE DOS SEUS EFEITOS
- LIVRO II PARTE ESPECIAL
- TITULO I CRIMES CONTRA AS PESSOAS
- CAPITULO ICRIMES CONTRA A VIDA
- CAPITULO IIICRIMES CONTRA A INTEGRIDADEFÍSICA E PSÍQUICA
- CAPITULO IVCRIMES CONTRA A LIBERDADE DAS PESSOAS
- CAPITULO VCRIMES SEXUAIS
- CAPITULO VICOLOCAÇÃO DE PESSOAS EM PERIGO
- CAPITULO VIICRIMES CONTRA A DIGNIDADE DAS PESSOAS
- CAPITULO VIICRIMES CONTRA A RESERVA DA VIDA PRIVADA
- TITULO II CRIMES CONTRA O PATRIMÓNIO
- TITULO III CRIMES CONTRA A FÉ PUBLICA
- TITULO IV CRIMES CONTRA A COMUNIDADE INTERNACIONAL
- TITULO V CRIMES CONTRA A FAMÍLIA
- TITULO VI CRIMES CONTRA A ORDEM PUBLICA E A SEGURANÇACOLECTIVA
- TITULO VII CRIMES CONTRA O ESTADO DE DIREITO DEMOCRÁTICO
- CAPITULO I CRIMES CONTRA A SOBERANIA E A INDEPENDÊNCIANACIONAIS
- CAPITULO II CRIMES CONTRA AS INSTITUIÇÕES E OSVALORES DO ESTADO DEMOCRÁTICO
- CAPITULO III CRIMES CONTRA A ADMINISTRAÇÃO E A REALIZAÇÃODA JUSTIÇA
- CAPITULO IV CRIMES CONTRA A AUTORIDADE PÚBLICA
- CAPITULO V ALGUNS CRIMES RELATIVOS AO EXERCÍCIODE FUNÇÕES PÚBLICAS
- TITULO VII DISPOSIÇÕES FINAIS E GENÉRICAS
- TITULO I CRIMES CONTRA AS PESSOAS
- ÍNDICE REMISSIVO
- ÍNDICE SISTEMÁTICO
CÓDIGO PENAL DE CABO VERDE
MINISTÉRIO DA JUSTIÇA
Título: Código Penal de Cabo Verde Edição: Ministério da Justiça Índice analítico da Responsabilidade
da Comissão de Reformas Legislativas do M.J. Trabalhos Técnicos: Gráfica da Praia, Lda. Tiragem: 750 exemplares Maio de 2004 Praia — CABO VERDE
APRESENTAÇÃO
Em edição do Ministério da Justiça e visando a sua mais ampla divulgação, publica-se o Código Penal cuja entrada em vigor prevê-se para Julho do corrente ano. Um Código que afinal há muito se justificava, já porque o Código Penal actualmente em vigor, datado de 1886, não mais reflecte o ethos da sociedade cabo-verdiana, entretanto independente e democrática, já porque o mesmo Código se tornou irremediavelmente anacrónico e ineficiente perante os desenvolvimentos sócio-económicos globais e nacionais, não conseguindo, assim, prover a sociedade dos mecanismos normativos para fazer face à mutação e complexificação da criminalidade, especialmente a grande criminalidade organizada e transnacional.
Com efeito, o advento da independência, do Estado de Direito Democrático e as grandes alterações no cenário internacional, fizeram com que se impusesse a necessidade de se reformar a legislação penal. A adaptação a essas novas realidades, significou, acima de tudo, fazer com que as condutas criminalizadas sejam realmente as que são repudiadas pela sociedade cabo-verdiana de hoje, aquelas cujo combate na esfera jurídicopenal seja efectivamente justificado pela necessidade de segurança e estabilidade social da comunidade, sem esquecer, contudo, que a acção repressiva do Estado deve respeitar, sem condições ou excepções, os direitos, liberdades e garantias individuais, conforme determinado e garantido pela Constituição da República.
São esses, em suma, os alicerces estruturais das soluções vertidas para o novo Código Penal e que determinaram, nomeadamente, a exclusão de certas condutas que não mais mereciam censura social e, em contrapartida, a inclusão de novos tipos de crime, procurando acompanhar, a um tempo, a evolução da sociedade cabo-verdiana e os desenvolvimentos recentes da dogmática jurídico-penal , como está bastamente explicitado no Preâmbulo do novo Código.
Devo, finalmente, salientar que o Código Penal foi o resultado de árduo e exclusivo labor de juristas e outros especialistas cabo-verdianos, algo que só por si é uma fonte de regozijo e confirma que estamos aptos a apresentar soluções internas e de valia em matéria de reforma da legislação estruturante do sistema jurídico. Para além do autor do Anteprojecto, Jorge Carlos Fonseca, cuja contribuição vai já realçada no Preâmbulo do Código, e dos membros da Comissão de Acompanhamento, é de justiça destacar também o trabalho minucioso e o profissionalismo de Bernardino Delgado, Boaventura José dos Santos, Eduardo Rodrigues, Júlio Martins e José Delgado que asseguraram, neste últimos dois anos, a elaboração da lei de autorização legislativa e do Decreto legislativo de aprovação, bem como a revisão e o apuramento final do texto.
Agradeço, em geral, o esforço denodado de todos aqueles, anónimos ou não, que, de alguma forma, deram o seu contributo para a concretização bem sucedida desta obra colectiva.
Que o novo Código Penal possa servir adequadamente a comunidade da qual emanou contribuindo para garantir a sua coesão social e perenidade.
Praia, a 1 de Março de 2004
A Ministra da Justiça,
Cristina Fontes Lima
4
Decreto Legislativo n.º4/2003 de 18 de Novembro
PREÂMBULO
É hoje indiscutível a afirmação de que o Código Penal, mais do que qualquer outro conjunto de normas, corporiza as regras básicas de convivência de uma comunidade alicerçadas naquele mínimo ético aceite por uma sociedade, não só pelo tipo e natureza das sanções que contém mas igualmente pela selecção dos bens jurídicos que faz, enfim, pelo ideário político - criminal que atravessa e dá consistência a todo o seu tecido normativo.
O Código Penal vigente em Cabo Verde é basicamente o Código Penal português de 1886, e, em boa parte, o de 1852, com as alterações constantes de algumas reformas parcelares levadas a cabo em Portugal, e tornadas extensivas ao então Ultramar, e muito localizadas e pequenas alterações impostas pelo legislador cabo-verdiano, após a independência do país.
De mais a mais, sempre se considera ser o Código Penal um verdadeiro “termómetro” da evolução política, para realçar o estreito vínculo entre as mudanças de regime político e o Código Penal.
Ora, no nosso caso, mantém-se, no essencial, um Código do século XIX, que não é, nem podia ser um Código que reflectisse, de algum modo, os valores próprios de um Estado de direito moderno, sabendo-se, como se sabe, que o direito penal é a parcela do ordenamento jurídico que mais atinência tem com a matéria de direitos, liberdades e garantias individuais, e que um Estado de Direito Democrático não pode manejar os instrumentos punitivos com os mesmos critérios com que o faz um sistema de poder autoritário.
Se pensarmos que nos últimos vinte e sete anos sucedeu a independência do país e ocorreu uma mudança de regime, que desde 1992 temos uma nova Constituição, a qual institui um Estado de Direito Democrático e que define um conjunto de normas e princípios a observar pelo legislador ordinário, nomeadamente no domínio penal, ficará clara a necessidade de uma reforma urgente e global do velho código que ainda vigora entre nós.
Essa reforma justifica-se, pois, porque:
a) As normas relativas àquilo a que se chama doutrina geral do crime mostram-se completamente desactualizadas, face à evolução da dogmática jurídico-penal;
b) As condições sociais, económicas, culturais e políticas de Cabo Verde nada têm já a ver com o século XIX;
c) O próprio pensamento jurídico-penal, nas intenções político-criminais fundamentais que contendem directamente com as partes especiais dos códigos penais, modificou-se profunda e radicalmente;
d) A Parte Especial, nem de perto, nem de longe eleva à categoria de bens jurídico-penais os valores que a comunidade politicamente organizada hoje exige como essenciais à sua afirmação e subsistência.
Assim,
Convindo aprovar um novo Código Penal e, consequentemente, proceder à revogação do Decreto de 16 de Setembro de 1886 e as suas alterações bem como todas as disposições legais contidas em leis avulsas que prevêem e punem factos incriminados pelo novo diploma.
Ao abrigo da autorização legislativa concedida pela Lei n.º 24/VI/2003, de 21 de Julho;
No uso da faculdade conferida pela alínea b) do n.º 2 do artigo 203º da Constituição, o Governo decreta o seguinte:
Artigo 1.º
(Aprovação)
É aprovado o Código Penal, que faz parte do presente Decreto-Legislativo.
Artigo 2.º
(Alterações) - Ficam alteradas para os limites mínimo e máximo fixados no artigo 51º, do Código Penal, todas as penas de prisão que tenham duração inferior ou superior aos limites aí estabelecidos.
- Ficam alteradas para os limites mínimos e máximos resultantes do artigo 67º, n.º 1, do Código Penal, todas as penas de multa cominadas em leis penais, de duração ou quantitativo inferiores ou superiores aos limites aí fixados.
Artigo 3.º
(Remissões)
Consideram-se efectuadas para as correspondentes disposições do novo Código Penal, todas as remissões feitas para normas do Código anterior contidas em leis penais avulsas.
Artigo 4.º
(Revogações)
Com excepção das normas relativas a contravenções, são revogados o Código Penal, aprovado pelo Decreto de 16 de Setembro de 1886 e todas as disposições legais que prevêem e punem factos incriminados pelo novo Código Penal, nomeadamente:
a) O Decreto-Lei n.º 39.688, de 5 de Junho de 1954, que aprovou a chamada reforma de 54 e aplicada ao Ultramar, com alterações, pelos artigos 16º e 17º do Decreto-Lei n.º 39.997, de 29 de Dezembro de 1954;
b) O Decreto-Lei n.º 39.998, de 29 de Dezembro de 1954, directamente aplicável ao Ultramar, que alterou os artigos 141º e 150º do Código, no concernente aos crimes contra a segurança do Estado;
c) O Decreto-Lei 40166, de 18 de Maio de 1955, e bem assim, a Portaria n.º 15.989, de 08 de Outubro de 1956, que o manda aplicar ao Ultramar;
d) O Decreto-Lei n.º 41074, de 17 de Abril de 1957, e bem assim, a Portaria 16315, de 07 de Junho de 1957, que o manda aplicar ao Ultramar;
e) O Decreto-Lei n.º 184/72, de 31 de Maio e bem assim a Portaria
n.º 342/74, de 29 de Maio que o mandou aplicar ao Ultramar; f) O Decreto-Lei n.º 37/75, de 18 de Outubro; g) O Decreto-Lei n.º 32/77, de 14 de Maio; h) O Decreto-Lei n.º 78/78, de 16 de Setembro e bem assim, o
Decreto-Lei n.º 130/87, de 12 de Dezembro; i) O Decreto-Lei n.º 78/79, de 25 de Agosto, e bem assim, o Decreto-
Lei n.º 129/87, de 12 de Dezembro; j) O Decreto-Lei n.º 142/87, de 19 de Dezembro; k) A Lei n.º 20/IV/91, de 30 de Dezembro; l) O Decreto Legislativo n.º 4/97, de 28 de Abril; m) A Lei 81/V/98, de 07de Dezembro.
Artigo 5.º
(Normas relativas a contravenções)
Mantêm-se em vigor as normas de direito substantivo e processual relativas às contravenções aplicando-se, porém, aos limites da multa e à prisão em sua alternativa, as disposições do novo Código Penal.
Artigo 6.º
(Penas comutativas de prisão e multa) - Enquanto vigorarem normas que prevejam penas cumulativas de prisão e multa, sempre que a pena de prisão for substituída por multa será aplicada
- uma só pena equivalente à soma da multa directamente imposta e da que resultar da substituição da prisão.
- É aplicável o regime previsto no artigo 70º do Código Penal à multa única resultante do que dispõe o número anterior, sempre que se tratar de multas em tempo.
Artigo 7.º
(Suspensão da execução da pena)
Enquanto vigorarem normas que prevejam cumulativamente penas de prisão e multa, a suspensão da execução da pena de prisão decretada pelo Tribunal não abrange a pena de multa.
Artigo 8.º
(Regime penal especial para jovens)
Lei especial determinará o regime penal a ser aplicado aos jovens de idade compreendida entre 16 e 21 anos que sejam agentes de facto qualificado como crime.
Artigo 9.º
(Divulgação do Código Penal)
O departamento governamental responsável pela área da Justiça procederá à mais ampla divulgação do Código Penal ora aprovado.
Artigo 10.º
(Entrada em vigor)
O Código Penal e os artigos 2.º a 8.º do presente Decreto Legislativo entram em vigor a 1 de Julho de 2004.
Visto e aprovado em Conselho de Ministros.
José Maria Pereira Neves -Cristina Fontes Lima
Promulgado em 17 de Novembro de 2003 Publique-se. O PRESIDENTE DA REPÚBLICA, Pedro Verona Rodrigues
Pires Referendado em 17 de Novembro de 2003
O Primeiro Ministro,
José Maria Pereira Neves
CODIGO PENAL DE CABO VERDE
PREÂMBULO
Introdução
Desde a Independência que se reconheceu a necessidade de dotar o país de um ordenamento jurídico próprio, moderno e que reflectisse a realidade sócio-cultural cabo-verdiana.
Assim é que, a par de importantes revisões legislativas na área do Direito civil e administrativo, no que se refere ao Direito penal, desde 1977 se criaram no seio do Ministério da Justiça comissões revisoras do Código Penal integradas por juristas nacionais e chegou-se a produzir um anteprojecto da sua Parte Geral .
Embora não se tenha assinalado qualquer reforma estruturante, a legislação penal foi sendo objecto, desde então, de modificações pontuais e assistiu-se mesmo a uma proliferação de diplomas a criarem novos tipos penais numa tentativa de rever aspectos mais desadequados do Código Penal herdado, procurando, ainda que pontualmente, sintonizá-lo com a evolução da dogmática juridico-penal, a modificação evidente do núcleo de valores que se verificou em dois séculos e a tradição humanista da sociedade cabo-verdiana que, desde o acto fundador do Estado, em 1975, proscreveu a pena de morte.
Com a aprovação da Constituição de 1992, instituindo o Estado de Direito Democrático e definindo um conjunto de normas e princípios a observar pelo legislador ordinário no domínio penal tornou-se incontornável a necessidade de uma verdadeira reforma global do Código vigente.
Assim, em inícios de 1994, arranca o projecto de reforma com a definição dos “Termos de referência para a elaboração de um novo Código Penal de Cabo Verde”, seguido da realização do respectivo concurso público. O anteprojecto de Jorge Carlos Fonseca, entregue em 1996, foi objecto, desde então, de ampla discussão pública incluindo encontros restritos com magistrados, advogados e vários segmentos da sociedade civil e foi também apresentado, pelo autor, a uma Comissão Parlamentar de Acompanhamento da Reforma. O referido anteprojecto foi, outrossim, seguido de perto por uma Comissão Técnica de Acompanhamento (CTA) integrada por magistrados e advogados, nomeados pelo Ministério da Justiça.
A CTA concluiu os seus trabalhos em 1999 e, em 2000, chegou a ser aprovada pela Assembleia Nacional uma autorização legislativa para a aprovação do novo Código mas tal autorização caducaria, sem ter sido utilizada, com o fim da legislatura, em Janeiro de 2001.
Em 2001, o departamento governamental responsável pelo sector da Justiça, retomou, no ponto em que tinham ficado, os trabalhos de reforma, reavaliando os dados de quase dez anos de debate, procedendo à arbitragem das divergências que se mantinham quanto às soluções finais a serem vazadas no Código Penal e preparando uma nova proposta de lei de autorização legislativa. Em Maio de 2003, esta última é aprovada, por unanimidade, pelo Parlamento abrindo caminho à adopção pelo Conselho de Ministros do novo Código Penal.
I
Parte Geral
O Código ora aprovado consagra as seguintes orientações:
1. Do ponto de vista do ideário político-criminal, ele é marcado pelos valores fundamentais consagrados pela Constituição da República: a crença na liberdade do Homem e a consequente aposta na responsabilidade individual; a dignidade da pessoa humana e o afastamento de qualquer ideia de sua instrumentalização para a realização de fins outros que não o livre desenvolvimento da personalidade ética do indivíduo; a renúncia a formas de tratamento que conduzam ou potenciem atitudes de conformismo e a técnicas de segregação incompatíveis com o respeito pela dignidade da pessoa humana; a aposta na recuperação do homem; o culto do humanismo e a defesa de uma antropologia optimista.
O que se traduziu concretamente nas soluções seguintes:
2. A aplicação de sanções criminais tem sempre por finalidade a protecção dos bens jurídicos essenciais à subsistência da comunidade e a reintegração do agente na vida comunitária, como se diz expressamente no art. 47° do Código Penal. A solução é clara expressão da ideia - cara e própria de um Estado de Direito -de que a intervenção do direito penal deverá ser subsidiária, enquanto ultima ratio da política social.
O que significa que, num Estado de direito material, de cariz democrático e social, como o cabo-verdiano, o direito penal só deve intervir com os seus instrumentos próprios de actuação, onde se verifiquem lesões insuportáveis das condições comunitárias essenciais de livre realização e desenvolvimento da personalidade de cada homem.
O que deverá envolver ainda a aceitação da ideia de que só finalidades relativas de prevenção, geral e especial, podem justificar a aplicação de sanções criminais. A ideia de que a prevenção geral assume o primeiro lugar como finalidade da pena, não a prevenção geral negativa ou de intimidação, mas a prevenção geral positiva, de integração ou reforço da consciência jurídica comunitária e do seu sentimento de confiança no direito.
Ideia, aliás, com autónomo fundamento constitucional (art.º 17 nº 5, in fine).
Por outro lado, a mesma norma (47°) surge como expressão de um outro princípio, este decorrente da vertente social do Estado de Direito (vide, entre outros, os artigos 1° , n.ºs 2, 3 e 4,7°, 54°, 55°,e 58° a 79° da Constituição), e que consiste em impor ao Estado, titular do ius puniendi, a obrigação de ajuda e de solidariedade para com o condenado, proporcionando-lhe o máximo de condições para prevenir a reincidência e prosseguir a vida no futuro sem cometer crimes. O que equivale a dizer que a pena deve ter uma finalidade de ressocialização, estando afastadas desta ideia quaisquer concepções paternalistas ou instrumentalistas que pretendam consagrar um “modelo terapêutico” ou impor alguma “ideologia de tratamento”, inaceitáveis num Estado de Direito.
Título: Código Penal de Cabo Verde Edição: Ministério da Justiça Índice analítico da Responsabilidade
da Comissão de Reformas Legislativas do M.J. Trabalhos Técnicos: Gráfica da Praia, Lda. Tiragem: 750 exemplares Maio de 2004 Praia — CABO VERDE
APRESENTAÇÃO
Em edição do Ministério da Justiça e visando a sua mais ampla divulgação, publica-se o Código Penal cuja entrada em vigor prevê-se para Julho do corrente ano. Um Código que afinal há muito se justificava, já porque o Código Penal actualmente em vigor, datado de 1886, não mais reflecte o ethos da sociedade cabo-verdiana, entretanto independente e democrática, já porque o mesmo Código se tornou irremediavelmente anacrónico e ineficiente perante os desenvolvimentos sócio-económicos globais e nacionais, não conseguindo, assim, prover a sociedade dos mecanismos normativos para fazer face à mutação e complexificação da criminalidade, especialmente a grande criminalidade organizada e transnacional.
Com efeito, o advento da independência, do Estado de Direito Democrático e as grandes alterações no cenário internacional, fizeram com que se impusesse a necessidade de se reformar a legislação penal. A adaptação a essas novas realidades, significou, acima de tudo, fazer com que as condutas criminalizadas sejam realmente as que são repudiadas pela sociedade cabo-verdiana de hoje, aquelas cujo combate na esfera jurídicopenal seja efectivamente justificado pela necessidade de segurança e estabilidade social da comunidade, sem esquecer, contudo, que a acção repressiva do Estado deve respeitar, sem condições ou excepções, os direitos, liberdades e garantias individuais, conforme determinado e garantido pela Constituição da República.
São esses, em suma, os alicerces estruturais das soluções vertidas para o novo Código Penal e que determinaram, nomeadamente, a exclusão de certas condutas que não mais mereciam censura social e, em contrapartida, a inclusão de novos tipos de crime, procurando acompanhar, a um tempo, a evolução da sociedade cabo-verdiana e os desenvolvimentos recentes da dogmática jurídico-penal , como está bastamente explicitado no Preâmbulo do novo Código.
Devo, finalmente, salientar que o Código Penal foi o resultado de árduo e exclusivo labor de juristas e outros especialistas cabo-verdianos, algo que só por si é uma fonte de regozijo e confirma que estamos aptos a apresentar soluções internas e de valia em matéria de reforma da legislação estruturante do sistema jurídico. Para além do autor do Anteprojecto, Jorge Carlos Fonseca, cuja contribuição vai já realçada no Preâmbulo do Código, e dos membros da Comissão de Acompanhamento, é de justiça destacar também o trabalho minucioso e o profissionalismo de Bernardino Delgado, Boaventura José dos Santos, Eduardo Rodrigues, Júlio Martins e José Delgado que asseguraram, neste últimos dois anos, a elaboração da lei de autorização legislativa e do Decreto legislativo de aprovação, bem como a revisão e o apuramento final do texto.
Agradeço, em geral, o esforço denodado de todos aqueles, anónimos ou não, que, de alguma forma, deram o seu contributo para a concretização bem sucedida desta obra colectiva.
Que o novo Código Penal possa servir adequadamente a comunidade da qual emanou contribuindo para garantir a sua coesão social e perenidade.
Praia, a 1 de Março de 2004
A Ministra da Justiça,
Cristina Fontes Lima
4
Decreto Legislativo n.º4/2003 de 18 de Novembro
PREÂMBULO
É hoje indiscutível a afirmação de que o Código Penal, mais do que qualquer outro conjunto de normas, corporiza as regras básicas de convivência de uma comunidade alicerçadas naquele mínimo ético aceite por uma sociedade, não só pelo tipo e natureza das sanções que contém mas igualmente pela selecção dos bens jurídicos que faz, enfim, pelo ideário político - criminal que atravessa e dá consistência a todo o seu tecido normativo.
O Código Penal vigente em Cabo Verde é basicamente o Código Penal português de 1886, e, em boa parte, o de 1852, com as alterações constantes de algumas reformas parcelares levadas a cabo em Portugal, e tornadas extensivas ao então Ultramar, e muito localizadas e pequenas alterações impostas pelo legislador cabo-verdiano, após a independência do país.
De mais a mais, sempre se considera ser o Código Penal um verdadeiro “termómetro” da evolução política, para realçar o estreito vínculo entre as mudanças de regime político e o Código Penal.
Ora, no nosso caso, mantém-se, no essencial, um Código do século XIX, que não é, nem podia ser um Código que reflectisse, de algum modo, os valores próprios de um Estado de direito moderno, sabendo-se, como se sabe, que o direito penal é a parcela do ordenamento jurídico que mais atinência tem com a matéria de direitos, liberdades e garantias individuais, e que um Estado de Direito Democrático não pode manejar os instrumentos punitivos com os mesmos critérios com que o faz um sistema de poder autoritário.
Se pensarmos que nos últimos vinte e sete anos sucedeu a independência do país e ocorreu uma mudança de regime, que desde 1992 temos uma nova Constituição, a qual institui um Estado de Direito Democrático e que define um conjunto de normas e princípios a observar pelo legislador ordinário, nomeadamente no domínio penal, ficará clara a necessidade de uma reforma urgente e global do velho código que ainda vigora entre nós.
Essa reforma justifica-se, pois, porque:
a) As normas relativas àquilo a que se chama doutrina geral do crime mostram-se completamente desactualizadas, face à evolução da dogmática jurídico-penal;
b) As condições sociais, económicas, culturais e políticas de Cabo Verde nada têm já a ver com o século XIX;
c) O próprio pensamento jurídico-penal, nas intenções político-criminais fundamentais que contendem directamente com as partes especiais dos códigos penais, modificou-se profunda e radicalmente;
d) A Parte Especial, nem de perto, nem de longe eleva à categoria de bens jurídico-penais os valores que a comunidade politicamente organizada hoje exige como essenciais à sua afirmação e subsistência.
Assim,
Convindo aprovar um novo Código Penal e, consequentemente, proceder à revogação do Decreto de 16 de Setembro de 1886 e as suas alterações bem como todas as disposições legais contidas em leis avulsas que prevêem e punem factos incriminados pelo novo diploma.
Ao abrigo da autorização legislativa concedida pela Lei n.º 24/VI/2003, de 21 de Julho;
No uso da faculdade conferida pela alínea b) do n.º 2 do artigo 203º da Constituição, o Governo decreta o seguinte:
Artigo 1.º
(Aprovação)
É aprovado o Código Penal, que faz parte do presente Decreto-Legislativo.
Artigo 2.º
(Alterações) Artigo 3.º
(Remissões)
Consideram-se efectuadas para as correspondentes disposições do novo Código Penal, todas as remissões feitas para normas do Código anterior contidas em leis penais avulsas.
Artigo 4.º
(Revogações)
Com excepção das normas relativas a contravenções, são revogados o Código Penal, aprovado pelo Decreto de 16 de Setembro de 1886 e todas as disposições legais que prevêem e punem factos incriminados pelo novo Código Penal, nomeadamente:
a) O Decreto-Lei n.º 39.688, de 5 de Junho de 1954, que aprovou a chamada reforma de 54 e aplicada ao Ultramar, com alterações, pelos artigos 16º e 17º do Decreto-Lei n.º 39.997, de 29 de Dezembro de 1954;
b) O Decreto-Lei n.º 39.998, de 29 de Dezembro de 1954, directamente aplicável ao Ultramar, que alterou os artigos 141º e 150º do Código, no concernente aos crimes contra a segurança do Estado;
c) O Decreto-Lei 40166, de 18 de Maio de 1955, e bem assim, a Portaria n.º 15.989, de 08 de Outubro de 1956, que o manda aplicar ao Ultramar;
d) O Decreto-Lei n.º 41074, de 17 de Abril de 1957, e bem assim, a Portaria 16315, de 07 de Junho de 1957, que o manda aplicar ao Ultramar;
e) O Decreto-Lei n.º 184/72, de 31 de Maio e bem assim a Portaria
n.º 342/74, de 29 de Maio que o mandou aplicar ao Ultramar; f) O Decreto-Lei n.º 37/75, de 18 de Outubro; g) O Decreto-Lei n.º 32/77, de 14 de Maio; h) O Decreto-Lei n.º 78/78, de 16 de Setembro e bem assim, o
Decreto-Lei n.º 130/87, de 12 de Dezembro; i) O Decreto-Lei n.º 78/79, de 25 de Agosto, e bem assim, o Decreto-
Lei n.º 129/87, de 12 de Dezembro; j) O Decreto-Lei n.º 142/87, de 19 de Dezembro; k) A Lei n.º 20/IV/91, de 30 de Dezembro; l) O Decreto Legislativo n.º 4/97, de 28 de Abril; m) A Lei 81/V/98, de 07de Dezembro.
Artigo 5.º
(Normas relativas a contravenções)
Mantêm-se em vigor as normas de direito substantivo e processual relativas às contravenções aplicando-se, porém, aos limites da multa e à prisão em sua alternativa, as disposições do novo Código Penal.
Artigo 6.º
(Penas comutativas de prisão e multa) Artigo 7.º
(Suspensão da execução da pena)
Enquanto vigorarem normas que prevejam cumulativamente penas de prisão e multa, a suspensão da execução da pena de prisão decretada pelo Tribunal não abrange a pena de multa.
Artigo 8.º
(Regime penal especial para jovens)
Lei especial determinará o regime penal a ser aplicado aos jovens de idade compreendida entre 16 e 21 anos que sejam agentes de facto qualificado como crime.
Artigo 9.º
(Divulgação do Código Penal)
O departamento governamental responsável pela área da Justiça procederá à mais ampla divulgação do Código Penal ora aprovado.
Artigo 10.º
(Entrada em vigor)
O Código Penal e os artigos 2.º a 8.º do presente Decreto Legislativo entram em vigor a 1 de Julho de 2004.
Visto e aprovado em Conselho de Ministros.
José Maria Pereira Neves -Cristina Fontes Lima
Promulgado em 17 de Novembro de 2003 Publique-se. O PRESIDENTE DA REPÚBLICA, Pedro Verona Rodrigues
Pires Referendado em 17 de Novembro de 2003
O Primeiro Ministro,
José Maria Pereira Neves
CODIGO PENAL DE CABO VERDE
PREÂMBULO
Introdução
Desde a Independência que se reconheceu a necessidade de dotar o país de um ordenamento jurídico próprio, moderno e que reflectisse a realidade sócio-cultural cabo-verdiana.
Assim é que, a par de importantes revisões legislativas na área do Direito civil e administrativo, no que se refere ao Direito penal, desde 1977 se criaram no seio do Ministério da Justiça comissões revisoras do Código Penal integradas por juristas nacionais e chegou-se a produzir um anteprojecto da sua Parte Geral .
Embora não se tenha assinalado qualquer reforma estruturante, a legislação penal foi sendo objecto, desde então, de modificações pontuais e assistiu-se mesmo a uma proliferação de diplomas a criarem novos tipos penais numa tentativa de rever aspectos mais desadequados do Código Penal herdado, procurando, ainda que pontualmente, sintonizá-lo com a evolução da dogmática juridico-penal, a modificação evidente do núcleo de valores que se verificou em dois séculos e a tradição humanista da sociedade cabo-verdiana que, desde o acto fundador do Estado, em 1975, proscreveu a pena de morte.
Com a aprovação da Constituição de 1992, instituindo o Estado de Direito Democrático e definindo um conjunto de normas e princípios a observar pelo legislador ordinário no domínio penal tornou-se incontornável a necessidade de uma verdadeira reforma global do Código vigente.
Assim, em inícios de 1994, arranca o projecto de reforma com a definição dos “Termos de referência para a elaboração de um novo Código Penal de Cabo Verde”, seguido da realização do respectivo concurso público. O anteprojecto de Jorge Carlos Fonseca, entregue em 1996, foi objecto, desde então, de ampla discussão pública incluindo encontros restritos com magistrados, advogados e vários segmentos da sociedade civil e foi também apresentado, pelo autor, a uma Comissão Parlamentar de Acompanhamento da Reforma. O referido anteprojecto foi, outrossim, seguido de perto por uma Comissão Técnica de Acompanhamento (CTA) integrada por magistrados e advogados, nomeados pelo Ministério da Justiça.
A CTA concluiu os seus trabalhos em 1999 e, em 2000, chegou a ser aprovada pela Assembleia Nacional uma autorização legislativa para a aprovação do novo Código mas tal autorização caducaria, sem ter sido utilizada, com o fim da legislatura, em Janeiro de 2001.
Em 2001, o departamento governamental responsável pelo sector da Justiça, retomou, no ponto em que tinham ficado, os trabalhos de reforma, reavaliando os dados de quase dez anos de debate, procedendo à arbitragem das divergências que se mantinham quanto às soluções finais a serem vazadas no Código Penal e preparando uma nova proposta de lei de autorização legislativa. Em Maio de 2003, esta última é aprovada, por unanimidade, pelo Parlamento abrindo caminho à adopção pelo Conselho de Ministros do novo Código Penal.
I
Parte Geral
O Código ora aprovado consagra as seguintes orientações:
1. Do ponto de vista do ideário político-criminal, ele é marcado pelos valores fundamentais consagrados pela Constituição da República: a crença na liberdade do Homem e a consequente aposta na responsabilidade individual; a dignidade da pessoa humana e o afastamento de qualquer ideia de sua instrumentalização para a realização de fins outros que não o livre desenvolvimento da personalidade ética do indivíduo; a renúncia a formas de tratamento que conduzam ou potenciem atitudes de conformismo e a técnicas de segregação incompatíveis com o respeito pela dignidade da pessoa humana; a aposta na recuperação do homem; o culto do humanismo e a defesa de uma antropologia optimista.
O que se traduziu concretamente nas soluções seguintes:
2. A aplicação de sanções criminais tem sempre por finalidade a protecção dos bens jurídicos essenciais à subsistência da comunidade e a reintegração do agente na vida comunitária, como se diz expressamente no art. 47° do Código Penal. A solução é clara expressão da ideia - cara e própria de um Estado de Direito -de que a intervenção do direito penal deverá ser subsidiária, enquanto ultima ratio da política social.
O que significa que, num Estado de direito material, de cariz democrático e social, como o cabo-verdiano, o direito penal só deve intervir com os seus instrumentos próprios de actuação, onde se verifiquem lesões insuportáveis das condições comunitárias essenciais de livre realização e desenvolvimento da personalidade de cada homem.
O que deverá envolver ainda a aceitação da ideia de que só finalidades relativas de prevenção, geral e especial, podem justificar a aplicação de sanções criminais. A ideia de que a prevenção geral assume o primeiro lugar como finalidade da pena, não a prevenção geral negativa ou de intimidação, mas a prevenção geral positiva, de integração ou reforço da consciência jurídica comunitária e do seu sentimento de confiança no direito.
Ideia, aliás, com autónomo fundamento constitucional (art.º 17 nº 5, in fine).
Por outro lado, a mesma norma (47°) surge como expressão de um outro princípio, este decorrente da vertente social do Estado de Direito (vide, entre outros, os artigos 1° , n.ºs 2, 3 e 4,7°, 54°, 55°,e 58° a 79° da Constituição), e que consiste em impor ao Estado, titular do ius puniendi, a obrigação de ajuda e de solidariedade para com o condenado, proporcionando-lhe o máximo de condições para prevenir a reincidência e prosseguir a vida no futuro sem cometer crimes. O que equivale a dizer que a pena deve ter uma finalidade de ressocialização, estando afastadas desta ideia quaisquer concepções paternalistas ou instrumentalistas que pretendam consagrar um “modelo terapêutico” ou impor alguma “ideologia de tratamento”, inaceitáveis num Estado de Direito.